terça-feira, fevereiro 14, 2006

Feira

Não fosse eu um homem objecto, ficava em casa a jogar Pro Evolution Soccer 5 on-line. Mas não. Resolvi participar, muito de corpo e muito menos de alma, no projecto Domingo de manhã na feira de São Pedro de Sintra. Afinal trata-se de um programa familiar e a adesão deve ser unânime e incontestável. “Vai ser tão bom sairmos os cinco, e dar um saltinho à feira para ver uns sapatinhos para o António que já só tem as botinhas, mas como as atirou para dentro da sanita o menino, coitadinho, praticamente não tem o que calçar.” Como é possível, alguma coisa ser muito boa, numa saída com três crianças que a única coisa que partilham é a necessidade de correr na direcção contrária à dos restantes. Existe outra questão. Nestas Feiras nunca se dá um saltinho. Dão-se no mínimo uns trezentos saltinhos com duas passagens minuciosas por cada banca, não se vá perder alguma oportunidade de comprar uma coisa que não serve para nada, 10 vezes mais barata do que cá fora. Por último, se o menino deitou as botinhas na sanita, que enfie os pézinhos nas botinhas encharcadas que mal não lhe há-de fazer.
Uma ida à feira de São Pedro de Sintra ao Domingo de manhã é um acontecimento marcante e que não se cinge à manhã propriamente dita. Nos dias que a antecedem, aquela cabeça produz em segredo uma lista de tópicos e de artigos. Para evitar interrogatórios, discussões ou conversas estéreis essa lista nunca é divulgada, muito menos escrita em papel como as restantes listas de compras do lar. Não vale a pena querer antecipar as intenções com perguntas do estilo “O que é que estás a pensar comprar ?” Isso não é uma pergunta. É uma tentativa clara de me imiscuir em assuntos que não são da minha competência. A resposta vem tendencialmente em tom acusatório:
“Vê-se mesmo que não és tu tratas das roupas deles. O João não tem calças decentes, estão todas rotas. O Manel parece um desgraçadinho, está tão grande que não há calças que não pareçam bermudas e o António coitadinho, também tem que ter roupa própria, não pode estar sempre a usar a roupa dos outros. Logo vejo o que é que vou encontrar. A feira é uma  caixa de surpresas e eu adoro surpresas apesar de já estar meia esquecida do conceito, já que ninguém me faz nenhuma já vai para algum tempo.”
Mais vale não perguntar coisa alguma. Mesmo que os sinais sejam preocupantes, não se fazem perguntas. “A cesta das compras também vai?” Isto não é uma pergunta. É uma perca de tempo e uma estupidez. Então se a meio da noite a cesta, capaz de levar um roupeiro lá dentro, foi parar à porta de casa é porque vai à feira com a família. E há-de regressar carregadinha de compras.
Lá vamos então para a feira. Como em todas as feiras, é impossível chegar até lá. Horas em pára arranca que permitem a cada um, ir identificando os diversos pontos de interesse e escolher o itinerário pretendido. Nenhum dos itinerários é compatível com o dos restantes mas isso também não é interessa nada. Mais meia horinha para estacionar e lá vamos ao café à cunha tomar uma bica e comer um travesseiro.  Nesta altura, já os miúdos andam ao estalo no âmbito da temática “Quantas castanhas assadas são para cada um e eu sou maior e mais velho do que tu e portanto como mais”.
É então que acontece o pior. O mais temido dos cenários começa a revelar-se “Tu também devias ver umas coisas para ti...” Neste momento abandono a figuração e passo a ser protagonista nesta odisseia. Não vale a pena queimar energia a discutir nem tentar contrapor. Se eu devia ver umas coisas para mim, então, decididamente, vou ver umas coisas para mim. Vou naquele passo de procissão em multidões entre bancas, a ouvir “Vá lá ver amori” em surround e a olhar  atentamente para o que é que os meus amoris ciganos têm para me mostrar.
(a continuação deste texto será enviada em exclusivo para a visita 50 000 da caixa de costura)

Sem comentários: