sexta-feira, janeiro 29, 2010

iAminhavida

Rituxa D'Orey olha-se pela última vez ao espelho, ainda com o larilas de ar babado atrás dela. Gosta do que vê. Sempre gostou aliás. Aquele rapaz era o único que parecia dar vida ao seu cabelo. Ficava sedoso, ganhava tons e formas leves, sem nunca perder a postura:

- Está lindo Zeca, mais uma vez. Quinta passo cá, antes da vernissage. Só para dar um jeito e pentear. Como só tu sabes meu querido.

O larilas engoliu em seco. Fez uma pausa, abanou a anca e avançou a medos para a resposta:

- Sabe o que é Rituxa? Quinta prometi que levava a minha tia ao médico. Anda com umas cólicas nos ossos que não se aguenta. Finalmente lá conseguiu consulta e eu prometi levá-la lá. Só cá estou durante a manhã.

- Ai que maçada. E agora como é que vamos fazer? Eu não posso chegar lá com aquele ar de gata borralheira. Ai ó Zeca faça lá como entender, mas não me abandone quando mais de si preciso. Fico à espera que me telefone a dizer a que horas me penteia entre as 5 e as 8. Não me faça uma desfeita destas.

Dentro da mala, o gadget de Rituxa desperta e prepara-se para os desabafos. Regista todas as queixas, os problemas, e os desabafos, dá-lhe palavras de apoio, mostra-lhe imagens onde aparece divina, oferece-lhe um chocolate para a acalmar, sugere argumentos para colocar o jovem cabeleireiro desconfortável, transforma-se uma bola anti stress e elogia-a de forma desmesurada.

iQuemaçada é um dos gadgets que a Apple criou para desabafos e stresses do dia a dia. Destina-se ao público feminino das classes alta e média alta.

Além do iQuemaçada, fazem parte desta linha o iAminhavida, destinado a crianças, o iAmerda para adolescentes, e por fim, o topo de gama: o iOcaralho que cobre um vasto publico alvo e possui múltiplos modos de funcionamento. Do trolha ao executivo, do desabafo ao insulto, este gadget pode ser usado em reuniões de trabalho, a conduzir, a interagir com gerentes de restaurantes, em idas ao futebol, em sessões parlamentares e em reuniões de condomínios. Só para aguçar o apetite dos mais curiosos, este brinquedo para adultos, consegue fazer toda a conversação com as linhas de apoio a clientes e as linhas de apoio técnico das mais prestigiadas empresas de comunicações: PT, Clix, Meo, CaboVisão, Zon, TMN, Optimus e Vodafone. Para os amantes de futebol existe uma edição exclusiva assinada por Sá Pinto.

Os preços destes pequenos grandes génios serão divulgados ainda no decorrer do primeiro trimestre de 2010.

quarta-feira, janeiro 27, 2010

Ponto de Situação

Todos os anos, por esta altura, o colégio agenda uma reunião entre pais e cada um dos professores. O objectivo é saber a quantas anda o educando e perceber como se pode corrigir os pontos de maior dificuldade. Cada professor tem a sua secretária e os pais vão fazendo fila para ir falar com os professores que entenderem. Há-os de todos os tipos. Os que só falam com o director de turma, os que falam com todos, os que falam com os mais giros, os que falam com os das disciplinas em que o filho mais se espalhou, e os que falam com as que têm mamas maiores. Estava tentado a combinar as duas últimas modalidades, mas a hora a que cheguei empurrou-me para a escolha dos que têm menos alunos para atender e se conseguisse ainda falar com os das disciplinas onde o bochechas mais patina. Quando cheguei senti-me como se estivesse no hipermercado e tivesse que ir ao talho, peixaria, padaria, charcutaria-carnes e charcutaria-queijos quase em simultâneo. Senhas de todos nas mãos e ver onde é que me chamavam primeiro. Perdi a vez na charcutaria-queijos porque estava a ser atendido na peixaria. A mulher da fruta não estava a tender e portanto fechou a banca. Que merda, logo a fruta onde ele mostra algumas carências.

Falei com o de Educação Física, depois com o de EVT (não fazia ideia o que era EVT, mas na conversa lá percebi que tinha a ver com Educação Visual e Trabalhos Oficinais), segui para o de Educação Cívica e Moral mas que afinal não era professor do bochechas e portanto voltei para a fila. Seguiu-se História e Geografia, Inglês, Matemática e Educação Musical.

Além das mensagens importantes, que deram direito a uma sessão de auto avaliação enquanto tratava do jantar, descobri a existência de uma diferença entre o que se passa na escola e o que é contado em casa. Nem comento, só relato:

O que se passou na escola:

Prof – É natural que tenhas dificuldade em aperfeiçoar o teu desenho. Tens uns lápis de cor muito rijos que dificultam a pintura. Era bom se pudesses ter outros mais moles.

Bochechas - Neste momento vai ser difícil comprar. Tenho muitos encargos financeiros com os hamsters.


 

O que chegou a casa:

Bochechas – A professora disse-me que se não comprar lápis bons, nunca vou conseguir ter boa nota a EVT.

Nós – Vamos ver o que se conseguimos comprar. Mas não é para estragar tudo na primeira aula.


 

O caso encontra-se em análise em conselho familiar. Os bichos até podem não ter culpa, mas era um bom pretexto para ver como se safam no remoinho do autoclismo.

sexta-feira, janeiro 22, 2010

Escresafio-me

Gosto das escritas, das palavras, palavra que gosto, do seu gosto, do seu agre do seu doce, adoço-me na textura das palavras escritas em papel, ou das cores de palavras pintadas nos muros, das palavras de ordem, da ordem trocada nas canções, das palavras gritadas em uníssono, gosto de "Golo "e de "Liberdade", decoro-as sem saber. Sabes que gosto das palavras ditas, gosto do som que lhes dá forma, gosto do som da palavra índole e da palavra resenha e das que me fazem atrapalhar a língua como "displicência" ou "Massachusetts". Gosto de as ver reféns na métrica de um poema, gosto de poemas sem métricas, gosto de palavras cúmplices das pontuações, do ponto de espantação como o'Neil lhe chamou, das reticências, da interrogação e da palavra vírgula. Gosto das palavras novas, googleio-as com gosto. Gosto da escrita criativa, e dos seus tantos escritores. Um dia ao calhas, Agosto, a gosto, escrevo uma canção.

quarta-feira, janeiro 13, 2010

Querido Pai Natal:

Bem sei que não costumas receber cartas por esta altura, mas ainda não passou um mês desde a tua interminável distribuição, pelo que presumo que o período de reclamações ainda não expirou. Também sei que já não vais para novo, o que aumenta, por um lado a probabilidade de estares demente, e por outro a imensidão da sapiência. Claramente não recorreste a esta última quando passaste lá por casa naquela mal-afortunada noite. Ratos em gaiolas? Então aquilo faz-se? Hamsters? Aquelas coisas não vieram em nada contribuir para a harmonia do lar, antes pelo contrário. É porque o de um está com fome e precisa de mais comida, é porque o de outro está gordo e não cabe na casa, é porque o do outro outro não sai da casa, é porque o deste não pára quieto, é porque o daquele está com frio e não pode estar na marquise, é porque o daquele outro passa a noite a andar na roda, é porque o de um não bebe água há mais de 10 minutos, é porque o daquele está stressado. Porra, nenhum dos meus filhos dizia stressado antes disto. Nem sabiam o que era e agora tenho três stressadinhos. E stressadinhos porquê ? Por causa de ratos ??????? Eles não estão aptos a tomar conta de nenhum ser vivo. Até os tamagochis deixaram morrer. Eles não podiam receber aqueles ratos. Ratos não. Como se não bastasse pelo menos um dos ratos é rata. Como se não bastasse essa rata pariu uma ninhada de sabe-Deus-quantos. E pois claro. E se ela come os filhos ? E não lhe toques na gaiola. E dá-lhe comida que eu não consigo. E olha que ela vai matar os filhos. E acho que ainda não matou porque não tem sangue na boca nem nas patas. E o melhor é dar-lhes leite para ela dar aos filhos. E como é que ela fabrica leite se não bebe leite. E é como as mulheres como? E como é que as mulheres fabricam o leite nas maminhas para os bebés?
E eu sou obrigado a aturar isto? Não me parece. Esquece a argumentação que também tens renas porque isso é uma opção tua. Tal como os ratos lá de casa. Portanto, neste contexto, sugiro que os substituas por uns que trabalhem a pilhas e que não se urinem. Para perceberes o desespero, confesso que já pensei em empalhá-los e transformá-los em capas para os ratos dos computadores. Também já pensei em comprar uma cobra para por no aquário e resolvia de uma só vez o problema da trabalheira que tratar dos aquários, o problema dos ratos e o problema da alimentação da cobra.
Grato pela atenção.

terça-feira, janeiro 05, 2010

Regressos

Nos dois últimos dias, os convites a entrar na máquina do tempo. Tempos idos que por estas e aquelas, agitam memórias.
No Domingo, em fim de férias, contagem decrescente para as azáfamas, uma ida a Mafra visitar o convento, aposentos reais e a biblioteca.
Desde a altura da recruta, chegar a Mafra dá-me um nó no estômago. Aquela puta angústia de Domingo à noite a tentar adivinhar a semana seguinte, mal disfarçada em graças cretinas de caserna. Sempre que chego a Mafra, faz-se esse nó no estômago, como o despertar um cheiro escondido num recanto longínquo da memória. Parece-me sempre que estou lá outra vez, enfiado naquela farda e naquelas botas, a passar o portão para a parada. O que acontecia até à sexta feira seguinte ainda hoje me provoca sentimentos contraditórios, entre o inútil e o útil, o exagero e o necessário, o estúpido e o pedagógico, o ridículo e o sensato, o execrável e o lúdico. À distância de todos estes anos, pareceu-me boa ideia mostra-lhes a zona militar do convento. Sobretudo o refeitório dos frades que faz lembrar o salão dos filmes do Harry Potter. Autorizados a fazê-lo pelo oficial do dia, regresso passadas duas décadas, aos corredores de pedra da área militar. Estava deserto e eu a lembrar o frio, os cheiros, os sons, os gritos de ordem unida, os gestos, os nomes em cada corredor como se fossem ruas. Os marias a inundarem o cabo de serviço com perguntas e um turbilhão de memórias na minha cabeça. Chegados ao refeitório e o aspecto simples mas imponente confirma-se. Tudo igual. E a marmelada que ao pequeno-almoço era mau sinal para o esforço que a manhã traria ? E os copos e pratos de alumínio alinhados milimetricamente com a ajuda de cordas esticadas para que tudo parecesse uma formatura? E os soldados a distribuir terrinas e travessas de comida como se de uma parada se tratasse? Depois do refeitório, mais corredores, e salas, e a parada. Agradecimentos feitos ao oficial de dia de acordo com o protocolo. Há tanto tempo que não me punha em sentido. Que coisa. Faria sentido? Gostei de vos levar lá. Gostei de lá voltar.

Na Segunda, sempre a mesma coisa primo Gonças, só nos encontramos nestas merdas. A tua mãe, que porra. É inevitável a viagem no tempo. Estavam lá os teus outros primos, os Geadas e depois é só puxar o fio para virem todas as meadas. O Pipas e o Ricardo e a Rita também lá estavam e faziam parte das histórias todas. Campo de Ourique parecia nosso. O Campo de Ourique de quando éramos super heróis sobre os telhados dos prédios dos Geadas, aqueles em frente à igreja, ou de quando tínhamos a banda. Os Puts. O Rock do Dentista. É a Milú que tem a tape que gravámos naquele estúdio. Cabra. A esta hora deve estar a ganhar milhões com direitos de autor. Havíamos de nos juntar sem ser assim. Que coisa. A tua mãe Gonças.