quarta-feira, abril 29, 2009

Quotas

- Nesta PlayStation 50 % é tua e os outros 50 %, são 25% meus e 25% do Manel. Certo ?
- E o António ?
- Então 40% teus, e 20% para cada um de nós.
- Nem pensar. Não fico abaixo dos 50%.
- Então 50% teus, 25% meus e 25% do Manel. Damos um comando qualquer ao António e ele acha que está a jogar, nem nota que não está ligado.
- Acabou. Esta Playstation é toda minha. Minto, 50% é da mãe. Comunhão de adquiridos meus caros.
- Diga pai?
- Calem-se e joguem antes que eu me arrependa.

Velho Francisco

Sentou-se no café. Não estava dia que justificasse a rua atravessada e a jogatana com os outros velhos nas mesas do jardim, à beira do coreto. Nem a esplanada, cruzes canhoto. Incomodava-o a impertinência do inverno além das fronteiras de Março. Não era só pela ausência de cor, ou a sensação de frio. Era a inércia convidada para todos os lugares. Os ossos que pareciam mais rijos, as articulações mais teimosas, os amigos que não arriscavam os lances de escadas, até o homem dos jornais que não lhe devolvia as deixas. Homem de poucas conversas nos dias assim. E dos sons do bairro, pouco mais que o agitar das copas das árvores, dos automóveis e passos apressados. Pediu chá e uma torrada. Sabia-lhe bem e a ocasião não lhe pareceu despropositada. Folheou o jornal e deixou-se levar pelo que lia, na sua maioria, ou disparates ou coisas que já sabia pela televisão logo manhã cedo. Envolveu-se de tal forma na leitura que tardou a aperceber-se a luz lá fora parecia mudada. Olhou para lá da rua e era ver os verde a desmultiplicarem-se em múltiplos tons, e as formas a clarificarem contornos. “Traga-me a conta sr Luis, que isto parece querer arrebitar”. Deixou umas moedas na mesa e saiu. Até as pernas pareciam responder de outra forma. Passou pelo quiosque e o homem dos jornais provocou-o para a conversa “Já viu isto? Agora são os porcos que se constipam”. Queria lá ele saber dos porcos, queria era apreciar o jardim, já com o chão recortado de sombras e sol, como peças de puzzle desenhadas nos caminhos, o agitar das árvores abafado pelo frenesim dos miúdos no parque e os sussurros aqui e ali de vizinhas cuscas, o som de passos curtos das empregadas vindas da praça para o almoço das patroas que o senhor engenheiro deve estar para chegar. Atravessou o jardim - até os patos já cá andavam fora - passou o coreto e sentou-se ao sol. A mulher das flores, olhos de vida e sorriso sincero, meteu-se com ele “Boa Tarde Sr Francisco, aposto que é hoje que me compra uma rosa para me oferecer”. Sorriu-lhe de volta.
- Anda lá Francisco, oferece uma rosa à Dona Gracinda. Olha que ela está caidinha por ti
Era o Manuel, antigo companheiro da Sueca.
- Deixa-te de coisas Manuel, e senta-te aí. Cheguei a ver isto mal parado. Os outros ?
– Dá-lhes um tempo, que já não vão para novos ao contrário de nós. Enquanto isso vamos a uma bisca.

segunda-feira, abril 20, 2009

Precisamos de uns novos donos

Além do vazio , a perda de há dois posts atrás, deixou três velhotas numa situação difícil.
Quando o meu sogro adoeceu, as três cadelas que ele tinha, foram para um canil perto da Malveira e neste momento não sabemos que fazer com elas.
A Pipas tem 14 anos e é a mais clarinha de todas. Já não ouve, mas continua cheia de mimos e de vontade de brincar.
A Clara tem 10 anos e é a maior de todas. Não dá grandes confianças no início, mas acaba por ser grande companheira.
A Tata também tem 10 anos, é irmã da Clara, e é a mais gorda e mais gato das três. Gosta de preguiçar e está sempre a pedinchar festas.



Neste momento o que preciso é de qualquer tipo de ajuda para que consiga arranjar-lhes novos donos: sugestões, contactos, divulgação deste post por mail, enfim algo que permita à Pipas, à Clara e à Tata ganhar uma nova vida.

Obbrigado a todos. O mail para onde podem fazer chegar alguma informação ou novidade é o aqui da caixa de costura: afrazao@gmail.com

Chantagista

Ó sirenes, tu vê lá se não te chibas. Passo a explicar. A avó Lídia, na verdade, é bisavó como tu sabes e está muito velhinha e tem momentos de lucidez. E em certas idades há notícias que não devem ser dadas. É discutível eu sei, mas ainda não podes decidir sobre esse tema.
Por outro lado eu sei que tu gostas muito de atenuar a tua condição de terceiro e de ínfimo lá de casa, ganhando corridas aos teus irmãos e sendo o primeiro em determinadas actividades. Mas não posso tolerar chantagens. Não são admitidas chantagens lá em casa. E dizeres, do cimo dos teus quatro anos, nada inocentes
"Ou sou o primeiro a ser servido de panquecas ou vou dizer à avó Lídia que o seu filho já não existe porque morreu" é claramente um caso de chantagem.

terça-feira, abril 14, 2009

Ainda era cedo pá

Já te tinha adivinhado assim no olhar vazio. O que foste tu fazer homem.? Percebeste ao menos que ninguém ali estava para despedidas? Viste-os os olhos perdidos dos teus amigos à espera de explicações no inexplicável? Viste a tua filha entrar na casa vazia, sem perceber a tua ausência, a vasculhar memórias que atenuassem dores. E os teus netos homem? Agora é que eles estão a chegar aquela idade que querias. A idade de os levares às pescarias, de ires com eles de madrugada à lota para o peixe fresco, de os ensinares a cozinhar, e a jogar Poker e Xadrez, de ires com eles às flores para os canteiros de São Martinho. Eles ainda tinham tanto para aprender contigo, homem. Todos tínhamos, mas eles então. Sei que a tua princesa grande já nem estava, mas caramba rapaz, foi também ela quem nos ensinou a lutar sempre até ao fim. Bem sei que estavas refilão, mas nunca te conhecemos doutra forma, e foi assim que aprendi a gostar de ti. E olha que foi gostar que se farta. Deves ter ficado chateado com o que te disse naquela noite em que resolveste que não querias ser internado, mas se soubesse o que sei hoje, tinha dito o dobro ou o triplo até te convencer que não podias ir para casa naquele estado. Desculpa lá a maneira como te falei, mas era-te tão urgente seres internado. Agora não vale a pena dizer-te tudo isto, que a tua mulher deve-te estar a dar uma desanda como já não ouvias há muito. Agora só vale a pena dizer-te que te sentimos tanta falta A falta que os filhos sentem de um pai, que os netos sentem de um avô e que os amigos sentem dos amigos. E sim é mesmo assim, as bochechas do João são iguais às tuas, e no génio do Manel e no gargalhar do António. E deixas-lhes também a doçura deles todos e da rainha lá de casa. A tua filha, heroína nesta história, levou o álbum das fotos lá para perto de ti porque ninguém se queria despedir, só queriam dar-te um abraço e um beijo. Havias de os ver felizes a recordar-te, é que ainda não era altura para despedidas. Ainda não era agora. Ainda era cedo.

terça-feira, abril 07, 2009

Lembro-me

Apego-me a memórias. Tantas vezes nem as sei, quando as cristalizo, tenho-as como se têm memórias e guardo-as como se guardam memórias. Á mão de semear. Não as faço cabides para pendurar as roupas do presente, ou para o ludibriar em alusões ao que já foi, não faço dias em sucessões geométricas. Quando lhes dou a vez, é a pedido dos sentidos. Sempre porque qualquer coisa ou por todas as coisas, os sentidos, as cores, os sabores, os cheiros, os sons. Lembro-me de cheiros quando os revisito sem querer e com eles vêm todos os sentidos. Lembro-me do cheiro da cantina do colégio em forma de castelo, e depois lembro-me das mesas, dos pratos, dos copos, dos azulejos e do elevador. Lembro-me do cheiro do soalho do ginásio e com ele lembro-me da ardósia, das cordas, das argolas, dos boques, dos plintos, e da sensação do peso do corpo sobre as mãos nas paralelas. Lembro-me dos sons, sons ordenados em cinco linhas, canções, e quando me lembro de canções vem tudo ao arrepio com pressa de chegar. Lembro-me do primeiro disco ouvido sem contar lhe contar as vezes, e de o ouvir ao vivo. O homem envergonhado lá ao fundo em cima do palco e a multidão com o dobro do meu tamanho, a voz imensa e a poeira. Lembro-me da poeira que me enchia as mãos e a roupa e do sorriso que me enchia a cara de o ouvir e quase o ver lá ao fundo, e o sono que já tinha. Lembro-me das canções. A memória das canções não é bem como a dos cheiros, ou a dos sabores, ou a das cores. É imensa.

sábado, abril 04, 2009

(des)Construção

"Seus olhos embotados de cimento e tráfego, beijou sua mulher como se fosse lógico, e flutuou no ar como se fosse sábado."
Mais do que a merda que os médicos me dizem sobre ti, é a merda do teu olhar que parece incapaz de dizer algo.

Algo me diz

.... que se desconjuntou tudo outra vez.

quarta-feira, abril 01, 2009

Hiper

As idas ao hipermercado, mesmo em modo toca e foge, são quase sempre animadas. Quanto mais não seja porque gosto de lhes adivinhar a vida só de olhar para os carrinhos ou para os cestos.
Ali na bela vista a população é diversificada e fico com a sensação que até as miúdas desdentadas das caixas ou os seguranças são meninos para me assaltar à saída. Preconceitos de gajo da classe média que resolve fazer compras no hiper às portas de Chelas.
A mulher da fila 36 gritava qualquer coisa ao miúdo que devia andar pelos nove anos. Liguei a super audição.
- Estás aqui está a levar um estalo nas fuças.
Era uma mulher gorda e grande e de ar rude.
- Mas que mania apanhastes tu agora. Levas uma chapadão no focinho. Deslarga-me as mamas.
Voltei a olhar. O miúdo esticava os braços e desatava a dar palmadas às mamas da gorda, como se estivesse a tocar tambor. A mulher limitava-se a ameaçá-lo e a desviar-se das investidas do jovem músico.
- Ó minha senhora mande-lhe com uma das mamas nas trombas que o rapaz perde os sentidos e se não perder a memória nunca mais se atreve.