segunda-feira, novembro 07, 2005

Paris

Preocupa-me a leveza de espírito com que se olha para os trágicos acontecimentos de Paris. Como se de um fenómeno isolado se tratasse, ao qual fossemos completamente alheios. Mais uma vez, um insistente e autista olhar para a árvore sem se dar conta da floresta.
Lembro-me de uma tira da Mafalda, em que esta passeava pela rua com a Susaninha e cruzavam-se com um pobre que pedia esmola. A Mafalda dizia que, cada vez que via um pobre, sentia um nó garganta. A Susaninha concordava. Depois a Mafalda defendia que se devia tratar melhor dos pobres. Garantir-lhes alimentação, saúde, habitação e educação. A Susaninha responde-lhe:
  • P’ra quê tudo isso? Basta escondê-los.
A verdade é que cada vez somos mais Susaninhas e menos Mafaldas.
Os governos preocupam-se muito com o défice e com a contenção de despesas, muito pouco com a criação de receitas, e praticamente nada com o aumento do desemprego, o crescimento da miséria, a exclusão social e o desrespeito pela natureza humana.
A nós, a cada um de nós, chateiam-nos os pedintes que nos interrompem o café na Mexicana, a quem damos uma moeda para que aquela interrupção acabe depressa mais do que pela intenção de ajudar. A nós chateiam-nos os shoppings cheios de grupos de pretos, capazes sabe-se lá do quê, e os ciganos que nos semáforos  nos querem encher os vidros de um detergente que tresanda a pobreza. Mais a merda dos pensos rápidos ou dos lenços de papel que compramos 10 vezes mais caros que no super, só para nos livrarmos rapidamente do problema que é, para nós, ter aquele clandestino do Leste por perto. Queremos lá saber da sua miséria, se não têm emprego, se são ilegais, se não têm dinheiro, se não têm  futuro nem no futuro o irão alguma vez ter. Têm tão bom corpo para trabalhar, nem percebo o que é que ali andam a fazer. Há aí tanta obra a precisar de força bruta, tanta escada por lavar. Queremos é que não nos chateiem, e sobretudo, que os filhos deles se afastem dos nossos. Se eles não se confinarem aos guetos, criamos guetos só para nós. Bairros onde se possa respirar à vontade. Melhor ainda, condomínios fechados.
Somos Susanas insuportáveis que exclamam de horror, indignados perante a atrocidade que cometem na cidade luz. No coração da velha e sábia Europa. Perguntamo-nos o que querem, o que ganham com toda aquela violência. Pergunto-me o que é que têm a perder? O que têm a perder aqueles que, mais do que arredados do sonho, lhes é negada a possibilidade de algum dia poderem sonhar ?
Criamos continuamente barris de pólvora à nossa volta, deixamos que os rastilhos se espalhem à nossa volta e soltamos exclamações sonoras quando um destes barris explode. A Europa Social não existe, estamos numa Europa obcecada pelas casas decimais dos rácios económicos, pelo défice, pela normalização dos bidés e pela proibição da colher de pau nas cozinhas dos restaurantes. Vivemos uma paz social podre e, pior que isso, uma paz interior em putrefacção.
A propósito do que se passa em França, mas que era possível passar-se em quase toda a dita civilização dita ocidental, li hoje uma frase que me levou a esta escrita.
“Quando a ordem é injusta, a desordem é, por si só, um factor de justiça.”

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