Luísa
Uma coisa é garantida. As cores e os sons são os de quem vende e os de quem compra. As mulheres gordas e de avental atropelam as vozes para chegar primeiro aos ouvidos das freguesas. A fruta cheira a fruta, os legumes a legumes e o peixe, meu Deus, cheira tanto a peixe. Todos apregoados como os mais frescos das redondezas e baratos, que a vida está tão difícil para todos. A salsa e os coentros são por nossas conta, e se levar este restinho da caixa, até se faz um preço especial. Os trocos levam para as carteiras os cheiro e as escamas. As prateleiras não têm espelhos nem ordem e os produtos nunca viram códigos de barras. A Sr.ª Teresa dos legumes até já tem uma balança das modernas, mas não há balanço como o dos pratos e dos pesos gastos no tempo.
Tantas idas aos hipermercados fizeram-na esquecer aquele estranho aconchego. As gordas rosadas chamam-na de “menina” e de “amor” e de repente apeteceu-lhe comprar de tudo um pouco. E regatear. O que lhe apetecia regatear. Há muito que não se deixava banhar de tanta cor. Os dias cinzentos atrás das costas e as feridas abertas da última relação velaram-lhe a alma. Tudo lhe parecia em contraluz e era assim que tinha que ser. “Filho da puta. No que me tornei”. Agora, o arco íris naquele mercado de um acaso, esbofeteava-lhe, um por um, os sentidos. Deixou-se levar pelo ardor, porque o que arde geralmente, tende a curar. E a possibilidade da cura, era para ela, algo que não se podia dar ao luxo de desprezar.
Aproximou-se das bancas de peixe, palco de tantas as campanhas eleitorais. Deixaram autocolantes nas balanças e aventais e beijos mal amanhados às peixeiras. Comprou muito peixe, em concordância com uma mão cheia de recomendações colhidas por alturas da última visita à médica de família. De certeza que da próxima vez, a peixeira se lembraria dela. Essa é outra vantagem do mercado, para além do dinheiro, ficam-nos com o rosto na memória. As freguesas também as decoram, sempre podem pedir contas à frescura da mercadoria, caso a coisa dê para o torto.
Foi até aos legumes. Verificou que tudo o que queria estava naquelas caixas. Batatas, cebolas, brócolos e couve flor. Não encontrou a couve flor. Dirigiu-se à vendedora e perguntou-lhe por ela. A mulher chamou o filho e pediu-lhe a caixa da couve flor.
“Acabou-se-me a que aqui tinha, e ainda não fui buscar mais. O meu filho já a traz. Está no segundo ano de turismo. É muito bom rapaz e ainda melhor filho. Ao Sábado dá-me sempre uma mãozinha aqui na praça a atender as freguesas.”
De trás dos caixotes, um rapaz traz a caixa pretendida. O olhar dele intrigou-a. Muito fixo, sem desvios. Olhar enorme e traquino, paredes meias com um sedutor tosco e vulgar. Baixou os olhos, pegou nos legumes e pagou sem olhar. Virou costas e saiu quase apressada. O rapaz chamou-a.
“Minha flor, esqueceu-se da sua couve, senhora”.
“Desculpe ?”
“A senhora ... Esqueceu-se da sua couve flor.”
Estava capaz de jurar que não foi aquilo que ele disse. Ainda pensou atirar-lhe a couve flor aos cornos. Acabou por lhe agradecer, pegou no saco e fez-se confundir na multidão.
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