sexta-feira, maio 08, 2020

Apocalipse - Dia décimo


Nem de propósito, O Big Brother, regressou ao panorama televisivo nacional. Por ora num registo muito semelhante ao de tantos portugueses confinados em casa, em tempos em que a nossa vida também se assemelha a um Big Brother.

É mesmo assim, esta casa é um verdadeiro Big Brother. Entre estudantes e trabalhadores à distância em tele trabalho somos cinco, e somando o número de telemóveis com o número de câmeras dos portáteis com o número de câmeras do sistema de alarme dá uma dúzia. Uma casa, cinco pessoas, doze câmaras, um cão. Bem vindos a uma das casas mais vigiadas do país. Na verdade isto é em tudo muito semelhante ao Big Brother, mas sem a Teresa Guilherme. Um aparte sobre o programa da televisão, acho muito mal que não tratem o Cláudio Ramos por Teresa Guilherme, sempre se mantinha um certa tradição. Dizia então das semelhanças. A marquise, porque também é dos poucos sítios da casa que tem rede, foi transformada em confessionário e é dali que, ao telefone com colegas ou amigos a quem chamamos sempre Teresa Guilherme, nos lamentamos sobre a ansiedade destes tempos e chegamos a fazer nomeações.

Já ouvi uma pessoa cá de casa no confessionário à beira de um ataque de nervos: “Isto aqui dentro é muito intenso, uma hora parece um dia e um dia parece uma semana. Sabe Teresa, estamos 24 horas por dia uns com os outros e às vezes já não temos discernimento para avaliar as situações” Para já esta merda desta matemática está toda errada e essa frase é uma estupidez. Um dia tem 24 horas. Portanto se uma hora parece um dia, um dia tem que parecer 3 semanas e meia. Não se muda a escala assim a meio da frase, com franqueza. Outras frases que se ouvem muito são “Eu sozinho faço mais pela casa do que outros todos juntos. Nem a porcaria da bancada sabem limpar. Todos os dias, todo o santo dia, chego à cozinha e a tampa do microondas está fora do microondas. Eu só arrumo, Teresa, porque não consigo viver assim no meio da chafurdice.” ou “Mandem-me lá para fora, que eu já não aguento estar aqui fechado. Ó produção, posso sair ?”

Hoje é dia de nomeações e como só estamos cinco só podemos nomear um. Estou com dificuldades na escolha. Podia nomear o Manuel F. porque na verdade ele está farto da casa e quer ir surfar e por outro lado o quarto dele tem a melhor secretária da casa e dá-me jeito para trabalhar em paz. Também podia nomear o João F. porque é o que contribui menos e não tem os horários dos outros concorrentes. Faz comida a meio da noite, deixa tudo sujo, deita-se quase de madrugada e foi dos últimos a entrar no concurso. Se não fosse esta coisa da covid ele estava em Erasmus na Alemanha.

Enfim, vou ter que decidir até ao directo de logo à noite. Agora tenho que ir que o António F. precisa da minha ajuda. Resolveu mudar a disposição do quarto e como aquilo é pequeno, a cama está encastrada na porta e o rapaz há 3 horas que não sai da solitária.

domingo, abril 26, 2020

Apocalipse - dia nono - dia da Liberdade

O paradoxo de celebrar, confinado, o dia da liberdade. E ainda assim, tão celebrado, que a necessidade aguça o engenho, e se ainda tantos sabem da urgência de o celebrar. E se outros tantos, mais do que antes, o fizeram este ano. Porque a “sede de uma espera só se estanca na torrente”.

Celebrações oficiais à parte, as ruas da cidade marcaram encontro nas varandas para cantar a canção. E antes da hora marcada já o vizinho do 16, espalhava pela rua a “Liberdade” do Sérgio, a “Inquietação“ do José Mário e o “Depois do Adeus” do Paulo. As vizinhas do 14, mesmo à nossa frente, aproveitavam a varanda ao sol para a encher de cravos e apanhar a boleia das canções do vizinho do 16. Vamos então à janela, quase na hora certa, e em conversa de vizinhos cúmplices nisto da quarentena, nisto de celebrar a liberdade, elogiamos-lhes os cravos que desta vez não tivemos oportunidade de comprar.
Quinze horas e lá se ouve o som dos pés compassados que introduzem a canção. Alguns vizinhos juntam-se agora para cantar que “em cada esquina, um amigo” e “em cada rosto, igualdade”. Palmas no fim e desejos trocados de bom dia da Liberdade, ainda que confinada, mais escancarada este ano.

Passadas horas vou passear o cão e no regresso as vizinhas do 14 saem do prédio e entregam-me, à distância de dois braços, um sorriso e um molho de cravos: “A sua mulher disse que não tinham então resolvemos dividir os nossos”.

Há 46 anos um restaurante celebrava um ano da inauguração e havia cravos para assinalar o aniversário. Com o golpe de estado, sem que o restaurante pudesse abrir, o gerente distribui os cravos pelos funcionários e mandou-os para casa. A Celeste, uma das funcionárias do restaurante, aproximou-se de um dos tanques perguntou o que se passava, ao que um soldado lhe respondeu "Nós vamos para o Carmo para deter o Marcelo Caetano. Isto é uma revolução!". O soldado pediu-lhe, ainda, um cigarro, mas Celeste não tinha nenhum. Celeste queria comprar-lhes qualquer coisa para comer, mas as lojas estavam todas fechadas.

Deu-lhes as únicas coisas que tinha para lhes dar: os molhos de cravos "Se quiser tome, um cravo oferece-se a qualquer pessoa". O soldado aceitou e pôs a flor no cano da espingarda. Celeste foi dando cravos aos soldados que ia encontrando, desde o Chiado até ao pé da Igreja dos Mártires.

As vizinhas do 14 foram a nossa Celeste, e como souberam bem aqueles cravos recebidos. A Ana agradeceu com um cartaz de obrigado colocado no meio das sardinheiras da janela. Os sorrisos atravessaram a rua quando viram o cartaz. Afinal há abraços que podem ser dados à distância.  

quinta-feira, abril 16, 2020

Apocalipse - dia oitavo


Esta promiscuidade física entre o escritório e a cozinha aliada a uma certa ausência de disciplina faz com que as próprias actividades se embrulhem e os horários sejam esbatidos. É frequente começar a trabalhar às 9 da manhã e terminar às 10 da noite com a nítida sensação de objectivos atingidos com sucesso, porque duas reuniões online, uma sopa de marisco, um relatório de progresso, umas pataniscas com arroz de tomate e dois planeamentos de projectos actualizados.

Não é só promíscua esta proximidade, como também é extremamente calórica e por via das dúvidas acrescentei à minha lista de actividades, a actividade física. Pesos, tapete, garrafa de água e computador vão para a zona entre a secretária e a sala e lá me ponho a acompanhar no youtube as aulas de ginástica localizada, as aulas para queimar muita gordura em 20 minutos, o treino completo para pernas e bumbum e os exercícios para perder a barriga em 12 minutos. Ele há treinos para tudo e com todas as durações possíveis. Se este ano houver direito a praia vou deixar muita gente surpreendida com a minha boa forma. Quer dizer, se além de ir às praia também for possível ir a praias onde estejam outras pessoas. Sem máscara se possível.

Queria só terminar deixando um apelo de forma a melhorar a sã e pacífica convivência entre os elementos cá de casa:  
“Solicita-se que após as actividade de engomadoria, a tábua e o ferro de engomar não sejam deixadas no meio do ginásio porque perturba a mobilidade dos atletas praticantes. Obrigado”

quarta-feira, abril 08, 2020

Apocalipse - Dia sétimo


Se há coisa que cresce, além da ansiedade, durante uma quarentena, é o cabelo. Mesmo em carecas que ainda ficam pior com gadelha do que qualquer outra espécie, porque há zonas sem qualquer cabelo e outras com cabelo ridiculamente compridos. Normalmente atrás e dos lados sendo que o pólo norte está um deserto capilar. Os cabelos dos miúdos também crescem desalmadamente e começou a tomar corpo a ideia que, o melhor mesmo, era  comprar uma máquina de cortar cabelo e fazer a manutenção capilar em casa.

Chegou ontem e, nem passadas 24 horas, já há uma corrente de pensamento que defende que nunca deveria ter chegado. A rainha e o Maria dos caracóis não aderiram à iniciativa. O bochechas, o sirenes e eu decidimos dar uso ao artefacto. Sabiamente, o mais velho cortou atrás e nas laterais deixando a parte de cima, farta mas bem cortada. Foi uma intervenção calculada e correu bem.

O mais novo, optou por um modelo avatar dita, para imensa alegria da matriarca cá de casa que só não foi com uma síncope para o hospital porque nesta altura o melhor é evitar situações delicadas de saúde que convidem a uma ida às urgências.
A besta rapou a cabeça e deixou uma seta no alto da dita.

Eu ia fazer um corte exactamente igual ao que faço no barbeiro. Pente quatro em cima, pente três dos lados e atrás. Eu não sei que merda de escala é que a porcaria da máquina tem, mas de certeza que não é igual à do meu barbeiro – “barbeiro do bairro”. Na primeira passagem até me ia cuspindo quando olhei para o espelho. Aquilo estava a cortar aos soluços (atente-se que nada tem nada a ver com tremeliques a cortar) ou lá que era , que mais parecia uma ovelha com uma doença dermatológica com bocados de lã a cair e outros intactos. Lá fiz uma segunda passagem devidamente assistido pelo mais velho e aquela porcaria tem mesmo a escala desajustada. Só pode. Nem nos tempos de tropa senhores. Fiquei tão mais careca, que a parte mais comprida do meu penteado são os cinco cabelos do pólo norte que resistiram à passagem da máquina. Estilo cebolinha.

Portanto, feitas as contas, depois da chegada da rebarbadora temos uma mãe e um filho com cabelos compridos, um avatar, um cebolinha e um com um ar meio rabeta.
Um dia destes vamos pintar o cabelo à mãe e há vários artistas inscritos para participarem na actividade criativa. Vai, com certeza, ficar um espectáculo.    

sexta-feira, abril 03, 2020

Apocalipse - Dia sexto


O estado de alerta cá de casa subiu para laranja, o segundo mais grave numa escala de quatro níveis. Numa manhã como todas as outras desta quarentena, a vizinha de baixo, médica, resolve telefonar para informar sobre o resultado do seu teste de covid-19: positivo. O bicho chegou ao condomínio. É preciso colocar o prédio em isolamento sanitário, pelo menos o 1º direito. Organizámo-nos em equipas. Equipas de um que é outra maneira de dizer cada um fez a sua coisa.

A rainha saiu de luvas, máscara improvisada a tapar cabelo boca e nariz, os panos todos de limpeza, esfregona e balde com uma solução que envolvia todos os detergentes e desinfectantes que encontrou (lixívia, vim verde, pronto madeiras escuras, fairy limão, álcool, champô - anti pulgas e esfoliante da sephora). Aquele balde da esfregona fazia inveja a muito radical muçulmano e estava prestes a explodir a qualquer momento. Ainda por cima só se lhe viam os olhinhos, se aparecesse assim num posto de controlo israelita era abatida num segundo. Dirigiu-se às áreas comuns da frente do prédio e foi tudo a eito… escadas, corrimões, manípulos de portas, caixas do correio, contadores e interruptores de luz e de abertura de porta. Ainda se colocou a hipótese de pregar umas tábuas a impedir a abertura da porta da fracção contaminada, mas a ideia foi vetada porque podia causar algum constrangimento à interacção do mundo com a senhora doutora. Mas quais interacção ? A senhora está contaminada senhores.

Eu fui tratar da transferência da zona contaminada cá de casa. Deixou de ser no hall de entrada e passou a ser no hall das escadas. Quando chego da rua é na zona contaminada que me livro de roupas e sapatos e procedo à desinfecção de focinho e patas do animal. Esta transferência devidamente comunicada no whatsapp do condomínio criou logo um frenesim no vizinho do lado que achou que a descontaminação deve ser feita no recato de cada lar. Nenhuma argumentação sobre coisa nenhuma pega com aquele homem que normalmente está contra qualquer decisão que seja tomada por outros que não ele, pelo que nos escusámos a explicar que a entrada da nossa casa é colada ao quarto do miúdo que tem asmas, alergias e dificuldades respiratórias frequentes e que portanto o melhor seria mesmo ser no lado de fora da nossa porta e que se trata de uma trela, um casaco e uns sapatos velhos e não de um charriot cheio de cabides com coronas de vários tamanhos e marcas. Ainda pensei em ter lá umas calças mas ia ser triste estar de cuecas numa zona comum. Triste e arriscado porque este vizinho do lado que está sempre contra tudo, também está contra a minha orientação sexual e eu não quero cá olhos colados no óculo cusco da porta do lado.

Por falar em traseiras, na traseira do prédio um dos miúdos foi colocar uma barreira física que impedisse o cão da fracção contaminada – vulgo cãotaminado – de subir as escadas até às fracções adjacentes. Ficou assim criado um corredor de evacuação até ao quintal da fracção contaminada para o cãotaminado evacuar, perdoe-se a redundância. Acontece que esse trajecto que o cão faz é comum ao utilizado por vários animais de outras fracções para aceder aos respectivos logradouros, pelo que o melhor seria ensinar o cãotaminado a servir-se em casa evitando assim o gastar de lixívia, vim verde, pronto madeiras escuras, fairy limão, álcool, champô - anti pulgas e esfoliante da sephora, sempre que procedemos à desinfecção do dito corredor após cada utilização pelo bicho.

Até que haja novos factos que justifiquem a respectiva reavaliação, o estado laranja mantém-se. Já pedi à senhora para ligar o exaustor lá de casa e dar muitos puns para que a fracção fique em constante pressão negativa, obrigando o ar a sair pela chaminé… raios a chaminé, é preciso tratar dessa área comum. Vou à sephora comprar mais esfoliante, que se há coisa que a chaminé consome é esfoliante.

terça-feira, março 31, 2020

Apocalipse - dia quinto

Os fins de semana, e por vezes os fins da tarde são dedicados a actividades domésticas. A senhora cá de casa está também em quarentena e não há maneira de se entender com o tele trabalho. O pó acumula-se e o cão parece que está a mudar o pelo todo. Limpar o pó é chato. Aquilo escolhe lugares estranhos para ajuntamentos sobretudo em locais de difícil acesso. Atrás da televisão, por cima das portadas, nos roda-pés, por cima dos quadros e em tudo o que é friso. O pó é inconveniente como um repórter da cmtv, só que se consegue tratar dele e não trabalha numa empresa que tem um departamento jurídico maior que a redação.

Cá em casa há panos para tudo e produtos para mais coisas ainda. Móveis em madeira, móveis brancos, vidros, electrodomésticos, cozinhas e casas de banho têm panos diferentes e produtos diferentes. Fazer uma divisão, digo assim porque parece mais profissional, é semelhante a ir ao atelier da Joana Vasconcelos quando ela fizer uma nazarena de trapos e embalagens.

Parece-me que tenho umas camisas para engomar e aquele ferro em caldeira parece uma máquina do demo, cada vez que carrego numa tecla acho sempre que o Dom Sebastião vai ser sair dali no meio de tanto vapor. Camisas também não é fácil e estou a tentar criar uma técnica que simplifique o processo. A única que parece resultar até agora é usar t-shirts em vez de camisas, mas eu chego lá.

domingo, março 29, 2020

Apocalipse - dia quarto


Diz que o tele trabalho funciona melhor se mantivermos as rotinas de escritório. Levantar cedo, tomar banho, vestir uma roupa adequada a qualquer video-conferência que possa surgir o que pode incluir camisa, blaser e calças de fato de treino, embora pessoalmente opte pela camisa,pullover e calças de ganga, tomar o pequeno almoço e passear o cão. A menos da ausência do trajecto casa escritório, a manhã é em tudo muito semelhante a uma manhã de trabalho até que se aproxima a hora de almoço. Ora eu não tenho por hábito cozinhar o almoço quando estou no escritório e agora em quarentena as coisas não são bem assim.
Além do requisito de cozinhar o almoço, esta quarentena tem sido farta em desejos gastronómicos. Um destes dias fui invadido por uma vontade súbita de cozido à portuguesa e, entre descobrir que não conseguia via Uber-eats,  encomendar as carnes no talho, e preparar o cozinhado, levei cinco dias até o conseguir fazer. Além do cozido, já houve almoços de peixe ao vapor, chocos na grelha e bochechas de porco. Eu que despachava tantas vezes o almoço com um mc Donalds, um H3 em dias especiais, uma sandes de presunto e queijo da serra ou um prego. Não é do tempo e do esforço que falo. É mesmo da gula. É que se o vírus tem uma curva monitorizada, por aquilo que eu vejo nas redes sociais e pelas pessoionhas que estão comigo a fazer esta quarentena, a curva da gula atingiu toda a população e não há forma de lhe inverter a derivada. Devia haver um boletim diário sobre o número de infectados pela gula, e pela ansiedade, e pela neura também.
Além dos meus cozinhados, nesta casa já houve petits gâteuax feitos de origem, gnocchi feitos de origem, caril de vária ordem, doces de ovos moles, bolo de brigadeiro e biscoitos de todos os tipos. Esta quarentena protege-nos do contágio do virús mas está longe de nos proteger do nosso próprio e voraz apetite.
À cautela, a balança cá de casa, está isolada no caixote de lixo desde o início de março. Não vá ela querer dar algum recado a alguém mais impaciente e abrir um lenho a alguém que passe na rua quando for arremessada janela fora.

sexta-feira, março 27, 2020

Apocalipse - dia terceiro

Tendencialmente, os passeios do cão e as compras pertencem-me. Cruzo-me com as pessoas que, nas respectivas casas, também ganharam o sorteio de passear os cães e vou a um minimercado de bairro que existe há pelo menos 30 anos muito graças à qualidade do bacalhau que vende. Já sou muito amigo dos donos e dos empregados do minimercado e eles tomam conta do cão à porta enquanto eu faço as compras. No primeiro dia, como quem não quer a coisa, mostrei-lhes dois ou três truques que o cão faz e agora, enquanto eu faço as compras, ouço a Deolinda a explicar à senhora que está na rua à espera da vez para poder entrar, que o Matias é o cão mais esperto que ela conhece:
- garanto-lhe que ele sabe morrer. Ó Matias morre lá. Bang Bang. Juro. Quando o dono lhe diz bang bang ele atira-se para o chão e morre um bocadinho. Palavra de honra.

Por falar em senhora à espera da vez, o que é que fazem tantas senhoras e senhores assim a modos que, como hei-de escrever isto, com idade para terem muito mas muito juízo, sempre a laurear a pevide na rua ? Como se o facto de terem nascido pouco depois da gripe espanhola lhes desse equivalência para este corona. Logo agora, que podem pedir as compras do supermercado e da farmácia, embirraram que haviam de sair de casa e logo todos de uma vez. Parece o Cocoon. O bicho anda aí e infelizmente não é verde florescente, nem do tamanho de um caniche. O bicho é muito pequeno e apanha-os num instante. Saiam da rua senhores, por favor, que é muito perigoso. Usem os serviços que os vizinhos e as juntas de freguesia estão a disponibilizar. A sério.

Tempos estranhos estes. Os anciãos a querer passar o dia na rua, os adultos a querer ir para os empregos e os adolescentes fartos do sofá. Mais uns dias e ainda vamos ver a Joacine a querer abandonar o parlamento. Paradoxos do apocalipse, já se vê.

quinta-feira, março 26, 2020

Apocalipse - dia segundo

A quarentena, não fazendo por mal, obriga-nos a prestar atenção a alguns detalhes que quase nos passavam despercebidos dentro da própria casa, ou nas vizinhanças próximas.

Não fazia ideia que tinha tantos vizinhos e, por incrível que pareça, a maior parte deles interage com bom dia e boa tarde e chegam a sorrir. Até os do 2º esquerdo do nº 27, pasme-se. Parecem uma republica estudantil e até há dois dias atrás  tinham uma escala para irem à varanda fumar e comer. Entretanto ou baixaram o nível de alerta para laranja ou enrolaram-se todo uns com os outros que já vai na segunda noite que fazem raves na varanda e na escada todos a menos de um metro uns dos outros e bebem, cantam, conversam e riem. Não me incomoda e até gosto de ouvir a agitação. Se se lembrarem de cantar canções de tuna académica, chamo a polícia e a direcção geral de saúde. Até lá, podem continuar.

Há três rapazes mais ou menos miúdos, mais ou menos adultos, que vivem cá em casa e que também parecem ser muito simpáticos. Até cozinham de quando em vez. Um de forma mais consistente, outro sempre que necessita e o do meio sempre que não consegue convencer ninguém a cozinhar para ele. Além de cozinhar, começam a sorrir e já dão os primeiros passos fora do quarto. Não tarda começam a falar connosco. Parece que estamos a reviver a altura em que eram bebés. Aposto que mais duas semanas e a rainha convence-os a voltar a vestir de igual e lá para o final de Abril ainda voltam aos cueiros e podemos andar com eles ao colo. Estou doido para que digam pai. Ao fim da tarde estão um bocadinho agitados mas nada que umas colheres de atarax não possam resolver.

O cão está cada vez mais profissional e hoje foi o cão que melhor se portou na conference call das 10, ao contrário do cão do responsável técnico do cliente que ladrou durante a reunião toda. Estou muito contente com o desempenho dele e acho que o vou promover de rookie a associate consultant e fazer cartões de visita para ele.


terça-feira, março 24, 2020

Apocalipse – dia primeiro

Está bem que as aulas foram canceladas há quinze dias, que eu já estou em tele trabalho há dez e que o estado de emergência foi declarado há cinco, mas a escrita rege-se por outras métricas e dia primeiro seja.

Estamos os cinco e o cão enfiados em casa e aos poucos e em tempos diferentes vamo-nos habituando a novas rotinas e arranjando estratégias para atenuar, esbater e achatar a muito pessoal curva do desespero.

A coisa prometeu ser animada logo no primeiro domingo de recato doméstico. É que provavelmente íamos ter que ficar em casa e é preciso não descurar a actividade física que é tão importante e vai daí, de repente estou a sair da decathlon com uma geringonça de step ao colo. Percebi logo que dali até ficarmos todos  infectados ia ser um instantinho. A geringonça de step tem uns pés deslizantes e uns elásticos e o mais certo é um de nós sair dali em duplo empranchado até à esquina de um móvel, abrir um lenho na cabeça ou partir um ou outro osso e ter que ir às urgências. Daí até fazer parte dos números diariamente divulgados pela DGS ao início da tarde, é um pulinho, já se vê.

Sobre a quarentena em si, o cão é quem parece ter maiores dificuldades de adaptação. Habituado a manhãs e tardes entregues à preguiça e à sesta, há duas semanas a esta parte que está demasiada gente em casa, sobretudo na cozinha e ele não resiste aos barulhos da caixa do pão, da torradeira a saltar, da lata dos biscoitos a abrir e há quinze dias que não prega olho durante o dia. Acresce que de repente toda a gente parece muito interessada em levá-lo à rua. Até bolhas nas patas o desgraçado do bicho apresenta com tanta ida à rua. Além de tudo isto, o bicho está talhado para uma carreira de consultoria. Não falha uma video conferência, normalmente com intervenções mais pertinentes que qualquer dos intervenientes. Também gosta de conference calls, porque pode ladrar à vontade o que é muito agradável para todos os participantes. Os auriculares parecem querer explodir no tímpano quando chega aos latidos mais agudos. É o animal ideal para ter em casa quando estamos em quarentena em regime de teletrabalho.

As faculdades, os ginásios, e as empresas promovem tele cenas para cada um dos cinco, e não há hora em que a casa não esteja a ser transmitida para qualquer sítio. Parece o bigbrother que por acaso não começou derivados do coisovid. Para evitar a existência de horas sem emissão, ainda existem as aplicações houseparty de cada um de nós para promover tele conversas, tele aniversários e tele bezanas sempre que tal se justifique. No sábado, o meu filho mais velho convidou-me para ser o par dele num tele quizz. Que programão, uma coisa de pai e filho, muito comparsas. Só revelou a minha total inabilidade para saber o nome de países com umas bandeiras que eu nunca tinha visto, ou o ramo de actividade da Nokia quando foi criada no século XIX, ou o nome original dos pauzinhos chineses. Está bem que me enganei e chamei crise de 1343-1345 à crise de 1383-1385, mas a partir de certa idade quarenta anos são uma ninharia e a resposta devia ter sido considerada correta. Conclusão, acho que o bochechas não me volta a convidar para um quiz pelo menos até à quarentena do covid-24.

No outro prato da balança, confesso que durante duas horas inteiras, dei bençãos e agradecimentos pelo recato e proibição de ajuntamentos promovidos pelo estado de emergência. Domingo às 19 horas, o virus permitiu cancelar a reunião de condomínio onde seriam abordados temas fraturantes como a coluna de esgotos e as infiltrações, a nova porta da rua e o ferro a imitar alumínio e a divisão em lotes para arrumos da casa da porteira que tem as humidades de Sintra e de São Martinho do Porto num espaço de uns 30 metros quadrados se tanto.

Amanhã tenho uma reunião e ainda não sei se hei-de reunir na cozinha ou se num dos quartos. Depende da escolha dos atletas cá de casa para as aulas de ginástica e para a sessão da geringonça do step. Vou perguntar ao cão onde é que lhe dá mais jeito.