quarta-feira, janeiro 21, 2009

Ermelinda

Nunca fora de se deixar surpreender nas provocações que a vida lhe fazia, antes escolhia ser ela a lançar-lhe os desafios. Desconfortavam-na portanto, aqueles tropeções que a deixaram assim, arredada do governo dos seus dias. Não era ao acaso que se confundia com o próprio bairro, e mesmo longe dos tempos em que, na sua bicicleta, deixava em cada porta uma garrafa de leite fresco, sempre ia havendo quem dele fizesse questão. E depois as partidas dos gaiatos, alguns deles já homens feitos pais de família, fiéis ao hábito do leite fresco pela manhã. Foi assim que o dia a dia se perpetuou até há pouco menos de um ano, com a ajuda da oficina do Zé das Biclas que lá lhe ia arranjando a corrente, os pneus ou os travões sem nada lhe cobrar. E agora isto de repente no joelho. Ainda tentou contrariar as dores e as indicações do médico, mas nada a fazer. Parecia que cada garrafa pesava toneladas e aquelas dores não as conhecia nem do parto do seu mais novo, que deus mais trabalho a sair que os outros três juntos. “Maldito joelho que me apanhaste. E agora que queres que faça da vida?“ Largou o veiculo em frente à praça e nunca mais teve coragem de por lá passar.
Foi o Polícia do bairro quem foi ter com ela a casa. Encontrou-a a lavar roupa num enorme alguidar, ali à beira do xafariz.
“Ó Horácio a que vens tu aqui? Não me digas que não posso lavar roupa na rua? Olha que é isso que me mantém entretida.”
“Deixa lá isso Ermelinda. Quero lá eu saber da roupa. O que me preocupa é o leite fresco”
“Qual leite fresco homem, sabes bem o que se passou… maldito joelho, ainda hoje não lhe perdoo. Já lá vai quase um ano”
“E a bicicleta Ermelinda? Está lá abandonada em frente à praça. Não podes deixar aquilo ali”
“Faz-me um favor homem, leva-me aquilo para o ferro velho. Nem a consigo encarar …”
“Vamos lá os dois tratar disso. Anda lá comigo e logo se vê o que se pode fazer. Ajudo-te com essa roupa”
Arrastou-a dali para fora.
Não lhe apetecia a ferrugem da velha parceira, mas sempre soubera que aquele dia havia de chegar. Quando, de braço dado ao Horácio, dobrou a esquina, baixou os olhos, como se se os levantasse devagar pudesse dosear a emoção. E assim fez, e ao fazê-lo descobriu caras de gente conhecida. Pareciam lá estar todos. O Zé Biclas, o Chico barbeiro, a Dona Bela da leitaria, a menina Adelaide do cabeleireiro e o homem das molduras, esquecera-lhe o nome, e os miúdos da escola e a Dona Inês a professora. Afastaram-se todos escancarando-lhe a velha parceira.
Ainda hoje não sabe o que a fez soltar aquelas lágrimas, se o reencontro, se o ar renovado que a pintura, os pneus e selim novos lhe conferiam, se aquele motor que o Zé colocou como que a dispensar o joelho do esforço, se aquela gente toda se ter posto à conversa e ao trabalho para lhe devolver cumplicidades. “Também o fazemos por nós Ermelinda, o bairro parece mais triste quando te não temos por perto”

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