Celebrações oficiais à parte, as ruas da cidade marcaram encontro nas varandas para cantar a canção. E antes da hora marcada já o vizinho do 16, espalhava pela rua a “Liberdade” do Sérgio, a “Inquietação“ do José Mário e o “Depois do Adeus” do Paulo. As vizinhas do 14, mesmo à nossa frente, aproveitavam a varanda ao sol para a encher de cravos e apanhar a boleia das canções do vizinho do 16. Vamos então à janela, quase na hora certa, e em conversa de vizinhos cúmplices nisto da quarentena, nisto de celebrar a liberdade, elogiamos-lhes os cravos que desta vez não tivemos oportunidade de comprar.
Quinze horas e lá se ouve o som dos pés compassados que introduzem
a canção. Alguns vizinhos juntam-se agora para cantar que “em cada esquina, um
amigo” e “em cada rosto, igualdade”. Palmas no fim e desejos trocados de bom
dia da Liberdade, ainda que confinada, mais escancarada este ano.
Passadas horas vou passear o cão e no regresso as vizinhas do
14 saem do prédio e entregam-me, à distância de dois braços, um sorriso e um
molho de cravos: “A sua mulher disse que não tinham então resolvemos dividir os
nossos”.
Há 46 anos um restaurante celebrava um ano da inauguração e havia cravos para assinalar o aniversário. Com o golpe de estado, sem que o restaurante pudesse abrir, o gerente distribui os cravos pelos funcionários e mandou-os para casa. A Celeste, uma das funcionárias do restaurante, aproximou-se de um dos tanques perguntou o que se passava, ao que um soldado lhe respondeu "Nós vamos para o Carmo para deter o Marcelo Caetano. Isto é uma revolução!". O soldado pediu-lhe, ainda, um cigarro, mas Celeste não tinha nenhum. Celeste queria comprar-lhes qualquer coisa para comer, mas as lojas estavam todas fechadas.
Deu-lhes as únicas coisas que tinha para lhes dar: os molhos de cravos "Se quiser tome, um cravo oferece-se a qualquer pessoa". O soldado aceitou e pôs a flor no cano da espingarda. Celeste foi dando cravos aos soldados que ia encontrando, desde o Chiado até ao pé da Igreja dos Mártires.
As vizinhas do 14 foram a nossa Celeste, e como souberam bem aqueles cravos recebidos. A Ana agradeceu com um cartaz de obrigado colocado no meio das sardinheiras da janela. Os sorrisos atravessaram a rua quando viram o cartaz. Afinal há abraços que podem ser dados à distância.
2 comentários:
A varanda da minha casa
A varanda da minha casa podia ser um ecrã de televisão de duas frentes, onde o espectador é protagonista e o papel principal é também do público.
Nunca foi tão utilizada a varanda da minha casa como nestes últimos dois meses e, em 7 anos de habitação, nunca foi tão estimada. Nem escancarada.
Esta minha varanda da casa podia ser um livro de histórias, uma testemunha num tribunal ou até mesmo uma comadre fuxiqueira, de tanto a que já assistiu.
Tão versátil que é este pequeno terraço da minha casa. Não só serve de pouso a hercúleas plantas suculentas, como é eirado para urbanos banhos de sol; tanto é púlpito de boas novas, como palanque de tristes destinos; se numa hora do dia é a esplanada mais cobiçada e solarenga da rua (e as pessoas nem imaginam os pitéus que já cá foram servidos), em alturas mais tardias é também o bar mais silencioso e individual do bairro.
Quem olha pela varanda da minha casa já me viu certamente a em diversos cenários:
a saborear um prato de almoço;
a falar ao telemóvel com a minha irmã;
a ver uma série no computador ou a tentar terminar de ler o mesmo livro vezes sem conta (hoje é que é!);
a trabalhar focada na próxima sessão remota ou a costurar mais uma cógula em TNT;
a pedir à minha mãe que endireite a câmara durante a vídeochamada ou a disparatar em mais uma conversa de grupo;
a ouvir mais um “Como é que o Bicho Mexe” no IG, mais um episódio d’ “A Beleza das Pequenas Coisas” em podcast ou mais um live musical no FB (#unidospelopresenteefuturodaculturaemPortugal);
a beber uma cerveja ao fim da tarde;
a chorar ou a desesperar por um toque humano que não o meu;
a jogar “quarantine quiz” on-line às quintas-feiras à noite;
ou até mesmo – o mais provável – a sobrepor várias destas actividades humanas ao mesmo tempo
(e só não digo que, num momento distracção de uma cortina mal fechada, ao trocar de roupa, possa ter involuntariamente mostrado as maminhas, porque o meu pai vai certamente ler este texto).
Foi pela varanda da minha casa que chorei a morte de um amigo e a impossibilidade de uma última despedida, a saudade dos abraços e dos afectos dos amigos e familiares e a revolta e a confusão silenciosa de tempos atípicos e sem prazo de validade, num mundo que continua injusto e desigual, e onde a certeza de que “vai ficar tudo bem” cai por terra se olharmos com atenção para os homens que dormem sobre e sob um cartão já ali ao fundo da rua.
Mas é através esta varanda da minha casa onde outrora só se ouviam os carros que agora escuto os pássaros a chilrear a qualquer hora do dia, transportando-me para um jardim que posso imaginar como quiser.
É nesta tribuna da minha casa que recebo o sol e a chuva, que anseio pelo próximo mergulho no mar e que escolho o destino mais apetecível e sem fronteiras.
É por esta mezzanine da rua que vejo as pessoas que vão e vêm, num compasso muito mais lento que o habitual, olhos procurando outros olhos, mais atentos e sorridentes, e que alargam agora, enfim, um Olá mais bem disposto e empático com os vizinhos, com quem antes nunca haviam tido tempo sequer para um cumprimento.
(continua...)
(...continuação)
Foi nesta galeria escancarada da minha casa que no 25 de Abril apresentei os cravos vermelhos habituais e simbólicos, em memória e honra da Revolução pacífica que me permitiu ter e aproveitar hoje esta varanda. Cravos esses elogiados pelo casal vizinho do prédio da frente com quem agora, enfim, comecei a trocar acenos e sorrisos, por força do confinamento a que este maldito vírus nos obrigou.
Tivemos com esta ida forçada para casa que reinventar o trabalho, a rotina, a comunicação e até as relações... e, se há coisa boa que tenha resultado disto tudo, foi também a necessidade de abrir de par em par as nossas janelas e de naturalmente aguçar a atenção e a disponibilidade ao mundo mais próximo e às pessoas à nossa volta.
Por isso, naquele mesmo sábado de 25/04 quando pela mesma varanda da minha casa vi o mesmo vizinho do prédio da frente sair para o passeio habitual com o cão, corri escada abaixo e atravessei a estrada com meia dúzia daqueles mesmos cravos vermelhos na mão que, com a devida distância de segurança, lhe estendi e pedi que partilhasse com a sua esposa.
O olhar admirado e agradecido do vizinho A. e a emoção que ali se gerou naqueles breves segundos de interacção (bem como o grande OBRIGADA que apareceu escrito na janela umas horas mais tarde pela vizinha A.) fizeram-me crer que o ganho foi igual para estas duas frentes de prédio da mesma rua.
Se é bem verdade que a partilha encurta a distância, é também certo que a varanda da minha casa é palco e plateia neste programa de televisão, onde a construção de pontes humanas é criativa e pode ser também, espero eu, viral.
- mj -
Um agradecimento especial das vizinhas MJ e MM, do nº14.
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