quarta-feira, dezembro 12, 2007

Fora de tempo

Não era de se deter frente ao espelho para lhe observar os sinais. Perdeu facilmente conta às rugas, aos cabelos brancos, e às manchas na pele. Nunca foi seu propósito, sempre o viu como um companheiro. É que a boa companhia deixa sempre marcas. Mais do que as marcas, era a perca ocasional de mais um gesto que incomodava. Ainda há dias foi a abotoar os cordões dos sapatos, teve que se sentar para o fazer. Riu-se como se lhe desculpasse o dano “O preço da sabedoria. Só com o passar tempo se consegue o saber, e o passar do tempo leva tanto tempo a passar. “
A cumplicidade conquistada ao sentido dos ponteiros do relógio assegurava-lhe a imensa serenidade. Tomava-lhe o gosto a cada volta de cada um dos ponteiros, e em cada volta, o tempo das coisas a que se entregava a gosto. Como num trapézio sem rede balouçava nos afectos, no amor, nas coisas simples, e em cada triplo salto mortal agarrava com firmeza, o balanço da próxima barra, sabendo-a com a exactidão dos impossíveis. Tic Tac Tic Tac. Era sempre assim que se entregava ao tempo, em voos de tempos certos, nas certezas de páginas bem vividas. Como os trapezistas, via lá em baixo na pista, os malabaristas a contas com as laranjas no ar, de ritmos alucinantes, dos tempos perdidos, de tempos em falta, de tempos desperdiçados e inexistentes. Sorriu ao vê-los desbaratando contra o tempo. “Contra o tempo não se luta, é sempre a favor. É o que nos permite voar no trapézio, é o que nos confere os super poderes”. Quase garanto que ainda lhe dava o privilégio de um sorriso feliz de criança num rosto amadurecido.

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