domingo, abril 26, 2020

Apocalipse - dia nono - dia da Liberdade

O paradoxo de celebrar, confinado, o dia da liberdade. E ainda assim, tão celebrado, que a necessidade aguça o engenho, e se ainda tantos sabem da urgência de o celebrar. E se outros tantos, mais do que antes, o fizeram este ano. Porque a “sede de uma espera só se estanca na torrente”.

Celebrações oficiais à parte, as ruas da cidade marcaram encontro nas varandas para cantar a canção. E antes da hora marcada já o vizinho do 16, espalhava pela rua a “Liberdade” do Sérgio, a “Inquietação“ do José Mário e o “Depois do Adeus” do Paulo. As vizinhas do 14, mesmo à nossa frente, aproveitavam a varanda ao sol para a encher de cravos e apanhar a boleia das canções do vizinho do 16. Vamos então à janela, quase na hora certa, e em conversa de vizinhos cúmplices nisto da quarentena, nisto de celebrar a liberdade, elogiamos-lhes os cravos que desta vez não tivemos oportunidade de comprar.
Quinze horas e lá se ouve o som dos pés compassados que introduzem a canção. Alguns vizinhos juntam-se agora para cantar que “em cada esquina, um amigo” e “em cada rosto, igualdade”. Palmas no fim e desejos trocados de bom dia da Liberdade, ainda que confinada, mais escancarada este ano.

Passadas horas vou passear o cão e no regresso as vizinhas do 14 saem do prédio e entregam-me, à distância de dois braços, um sorriso e um molho de cravos: “A sua mulher disse que não tinham então resolvemos dividir os nossos”.

Há 46 anos um restaurante celebrava um ano da inauguração e havia cravos para assinalar o aniversário. Com o golpe de estado, sem que o restaurante pudesse abrir, o gerente distribui os cravos pelos funcionários e mandou-os para casa. A Celeste, uma das funcionárias do restaurante, aproximou-se de um dos tanques perguntou o que se passava, ao que um soldado lhe respondeu "Nós vamos para o Carmo para deter o Marcelo Caetano. Isto é uma revolução!". O soldado pediu-lhe, ainda, um cigarro, mas Celeste não tinha nenhum. Celeste queria comprar-lhes qualquer coisa para comer, mas as lojas estavam todas fechadas.

Deu-lhes as únicas coisas que tinha para lhes dar: os molhos de cravos "Se quiser tome, um cravo oferece-se a qualquer pessoa". O soldado aceitou e pôs a flor no cano da espingarda. Celeste foi dando cravos aos soldados que ia encontrando, desde o Chiado até ao pé da Igreja dos Mártires.

As vizinhas do 14 foram a nossa Celeste, e como souberam bem aqueles cravos recebidos. A Ana agradeceu com um cartaz de obrigado colocado no meio das sardinheiras da janela. Os sorrisos atravessaram a rua quando viram o cartaz. Afinal há abraços que podem ser dados à distância.  

quinta-feira, abril 16, 2020

Apocalipse - dia oitavo


Esta promiscuidade física entre o escritório e a cozinha aliada a uma certa ausência de disciplina faz com que as próprias actividades se embrulhem e os horários sejam esbatidos. É frequente começar a trabalhar às 9 da manhã e terminar às 10 da noite com a nítida sensação de objectivos atingidos com sucesso, porque duas reuniões online, uma sopa de marisco, um relatório de progresso, umas pataniscas com arroz de tomate e dois planeamentos de projectos actualizados.

Não é só promíscua esta proximidade, como também é extremamente calórica e por via das dúvidas acrescentei à minha lista de actividades, a actividade física. Pesos, tapete, garrafa de água e computador vão para a zona entre a secretária e a sala e lá me ponho a acompanhar no youtube as aulas de ginástica localizada, as aulas para queimar muita gordura em 20 minutos, o treino completo para pernas e bumbum e os exercícios para perder a barriga em 12 minutos. Ele há treinos para tudo e com todas as durações possíveis. Se este ano houver direito a praia vou deixar muita gente surpreendida com a minha boa forma. Quer dizer, se além de ir às praia também for possível ir a praias onde estejam outras pessoas. Sem máscara se possível.

Queria só terminar deixando um apelo de forma a melhorar a sã e pacífica convivência entre os elementos cá de casa:  
“Solicita-se que após as actividade de engomadoria, a tábua e o ferro de engomar não sejam deixadas no meio do ginásio porque perturba a mobilidade dos atletas praticantes. Obrigado”

quarta-feira, abril 08, 2020

Apocalipse - Dia sétimo


Se há coisa que cresce, além da ansiedade, durante uma quarentena, é o cabelo. Mesmo em carecas que ainda ficam pior com gadelha do que qualquer outra espécie, porque há zonas sem qualquer cabelo e outras com cabelo ridiculamente compridos. Normalmente atrás e dos lados sendo que o pólo norte está um deserto capilar. Os cabelos dos miúdos também crescem desalmadamente e começou a tomar corpo a ideia que, o melhor mesmo, era  comprar uma máquina de cortar cabelo e fazer a manutenção capilar em casa.

Chegou ontem e, nem passadas 24 horas, já há uma corrente de pensamento que defende que nunca deveria ter chegado. A rainha e o Maria dos caracóis não aderiram à iniciativa. O bochechas, o sirenes e eu decidimos dar uso ao artefacto. Sabiamente, o mais velho cortou atrás e nas laterais deixando a parte de cima, farta mas bem cortada. Foi uma intervenção calculada e correu bem.

O mais novo, optou por um modelo avatar dita, para imensa alegria da matriarca cá de casa que só não foi com uma síncope para o hospital porque nesta altura o melhor é evitar situações delicadas de saúde que convidem a uma ida às urgências.
A besta rapou a cabeça e deixou uma seta no alto da dita.

Eu ia fazer um corte exactamente igual ao que faço no barbeiro. Pente quatro em cima, pente três dos lados e atrás. Eu não sei que merda de escala é que a porcaria da máquina tem, mas de certeza que não é igual à do meu barbeiro – “barbeiro do bairro”. Na primeira passagem até me ia cuspindo quando olhei para o espelho. Aquilo estava a cortar aos soluços (atente-se que nada tem nada a ver com tremeliques a cortar) ou lá que era , que mais parecia uma ovelha com uma doença dermatológica com bocados de lã a cair e outros intactos. Lá fiz uma segunda passagem devidamente assistido pelo mais velho e aquela porcaria tem mesmo a escala desajustada. Só pode. Nem nos tempos de tropa senhores. Fiquei tão mais careca, que a parte mais comprida do meu penteado são os cinco cabelos do pólo norte que resistiram à passagem da máquina. Estilo cebolinha.

Portanto, feitas as contas, depois da chegada da rebarbadora temos uma mãe e um filho com cabelos compridos, um avatar, um cebolinha e um com um ar meio rabeta.
Um dia destes vamos pintar o cabelo à mãe e há vários artistas inscritos para participarem na actividade criativa. Vai, com certeza, ficar um espectáculo.    

sexta-feira, abril 03, 2020

Apocalipse - Dia sexto


O estado de alerta cá de casa subiu para laranja, o segundo mais grave numa escala de quatro níveis. Numa manhã como todas as outras desta quarentena, a vizinha de baixo, médica, resolve telefonar para informar sobre o resultado do seu teste de covid-19: positivo. O bicho chegou ao condomínio. É preciso colocar o prédio em isolamento sanitário, pelo menos o 1º direito. Organizámo-nos em equipas. Equipas de um que é outra maneira de dizer cada um fez a sua coisa.

A rainha saiu de luvas, máscara improvisada a tapar cabelo boca e nariz, os panos todos de limpeza, esfregona e balde com uma solução que envolvia todos os detergentes e desinfectantes que encontrou (lixívia, vim verde, pronto madeiras escuras, fairy limão, álcool, champô - anti pulgas e esfoliante da sephora). Aquele balde da esfregona fazia inveja a muito radical muçulmano e estava prestes a explodir a qualquer momento. Ainda por cima só se lhe viam os olhinhos, se aparecesse assim num posto de controlo israelita era abatida num segundo. Dirigiu-se às áreas comuns da frente do prédio e foi tudo a eito… escadas, corrimões, manípulos de portas, caixas do correio, contadores e interruptores de luz e de abertura de porta. Ainda se colocou a hipótese de pregar umas tábuas a impedir a abertura da porta da fracção contaminada, mas a ideia foi vetada porque podia causar algum constrangimento à interacção do mundo com a senhora doutora. Mas quais interacção ? A senhora está contaminada senhores.

Eu fui tratar da transferência da zona contaminada cá de casa. Deixou de ser no hall de entrada e passou a ser no hall das escadas. Quando chego da rua é na zona contaminada que me livro de roupas e sapatos e procedo à desinfecção de focinho e patas do animal. Esta transferência devidamente comunicada no whatsapp do condomínio criou logo um frenesim no vizinho do lado que achou que a descontaminação deve ser feita no recato de cada lar. Nenhuma argumentação sobre coisa nenhuma pega com aquele homem que normalmente está contra qualquer decisão que seja tomada por outros que não ele, pelo que nos escusámos a explicar que a entrada da nossa casa é colada ao quarto do miúdo que tem asmas, alergias e dificuldades respiratórias frequentes e que portanto o melhor seria mesmo ser no lado de fora da nossa porta e que se trata de uma trela, um casaco e uns sapatos velhos e não de um charriot cheio de cabides com coronas de vários tamanhos e marcas. Ainda pensei em ter lá umas calças mas ia ser triste estar de cuecas numa zona comum. Triste e arriscado porque este vizinho do lado que está sempre contra tudo, também está contra a minha orientação sexual e eu não quero cá olhos colados no óculo cusco da porta do lado.

Por falar em traseiras, na traseira do prédio um dos miúdos foi colocar uma barreira física que impedisse o cão da fracção contaminada – vulgo cãotaminado – de subir as escadas até às fracções adjacentes. Ficou assim criado um corredor de evacuação até ao quintal da fracção contaminada para o cãotaminado evacuar, perdoe-se a redundância. Acontece que esse trajecto que o cão faz é comum ao utilizado por vários animais de outras fracções para aceder aos respectivos logradouros, pelo que o melhor seria ensinar o cãotaminado a servir-se em casa evitando assim o gastar de lixívia, vim verde, pronto madeiras escuras, fairy limão, álcool, champô - anti pulgas e esfoliante da sephora, sempre que procedemos à desinfecção do dito corredor após cada utilização pelo bicho.

Até que haja novos factos que justifiquem a respectiva reavaliação, o estado laranja mantém-se. Já pedi à senhora para ligar o exaustor lá de casa e dar muitos puns para que a fracção fique em constante pressão negativa, obrigando o ar a sair pela chaminé… raios a chaminé, é preciso tratar dessa área comum. Vou à sephora comprar mais esfoliante, que se há coisa que a chaminé consome é esfoliante.