O ritual começou com o mais velho e depois, um por um, ao ritmo que ganharam a capacidade se deslocar autonomamente, estendeu-se aos outros Marias. Sempre foi assim enquanto estavam no Jardim Escola de Alvalade e sempre que o lufa lufa e a meteorologia permitiam. Parar o carro perto da Igreja, pequeno almoço na Biarritz, visitar os peixes no lago que fica no meio do largo e descida pelos caminhos de terra até à escola. O senhor da Biarritz já nos conhecia e sabia dos leites com chocolate, das sanduíches de fiambre aparadas e do café curto. Sabia também que os peixes do lago faziam parte das brincadeiras e desencantava um pedaço de pão mais duro para os Marias distribuírem logo a seguir aos vorazes animais. O caminho até à escola era feito em modo aventura sempre pela floresta sem tocar nas escadas de pedra que acompanham a lateral da igreja. Se, na véspera, tivesse chovido, mais emocionante se tornava a descida.
Acabei de ler que a Biarritz vai ser transformada numa Portugália. É assim aos poucos, por esta Lisboa fora. Os lugares ganham formas de memórias. Em Campo de Ourique onde cresci, ou na Guerra Junqueiro vizinha das mais recentes moradas, o comércio de dezenas de anos, faz-se camaleão para outros cenários. Os empregados já não nos sabem o nome ou rosto e vice-versa. Oxalá estes lugares saibam ser memória de quem, agora, os faz ritual.
Não que eu seja muito de saudosismos melancólicos, mas há que lugares que na coincidência de uma qualquer razão, ficam parte de nós. Até me entusiasmo com a nova Lisboa, das Giras, dos turistas, do ruído dos trolleys arrastados na calçada lisboeta, dos Uber, das viaturas de aluguer de curta duração e, pasme-se, até das trotinetas eléctricas, mas caramba, não me esmaguem o património das memórias capazes da persistência.
É que ter filhos entre a adolescência e a idade adulta não está fácil e os Marias não têm propriamente paciência para uma conversa ao jantar do tipo “Lembram-se de irmos à Biarritz e dar pão aos peixes e descer até à escola pelos jardins?”. Seria muito mais eficaz ir até lá e subtilmente despertar as memórias. Só que para me dificultar a vida, obrigam-me a começar a evocação de uma sanduíche de fiambre em pão de forma aparada e um leite de chocolate da Ucal, com uma casca de sapateira recheada e uma imperial. E dou o quê aos peixinhos do lago? Uns restos de vazia mal passada com molho Portugália? Tenham paciência. Colaborem.
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