Somos um povo de brandos costumes, do cala e do consente,
das Amélias dos olhos doces, das Marias vida fria à espera que a vida lhes dê a
oportunidade das Marias Capaz. As mulheres da porrada de todos os dias, da
violência, do insulto, do sexo à bruta, da ameaça, das promessas quebradas, dos
sonhos desfeitos, das marcas no corpo, das feridas da alma, da vergonha, do
medo, da vida desfeita. O que as separa da fuga? O que lhes impede a denúncia?
O que as faz reféns? Porque foi só uma vez, porque no namoro ele lhe dizia
coisas tão bonitas e a respeitava tanto, porque tem andado a beber, porque a
ama daquela maneira tão peculiar e além desse amor não tem outro, porque não
tem para onde ir, porque ele ia arranjar maneira de lhe por as mãos em cima,
porque ele ia ficar tão desesperado, porque os filhos precisam deles juntos,
porque ele está desempregado e nem sequer é violento, porque o que é que os
outros iam dizer, porque ia viver do quê, do ar? E até quando? Até ficar sem
dinheiro e precisar dele outra vez?
Não, não são elas as cobardes. Em cada uma delas há uma
capacidade infinita para sofrer, para amar, para perdoar, e para lá de tudo
isso para um dia se tornarem numa Maria Capaz. A cobardia está em cada um
deles. Pelo poder da besta, pelas frases de chantagem, pelas promessas
quebradas, pelas falsas declarações de amor, pelo medo que as diminui, pelas
marcas no corpo e na alma.
Agora preciso de muito cuidado com a figura de estilo porque
o assunto é demasiado sério para ser usado como argumento. Faço-o porque
abomino a argumentação do medo, da chantagem, das falsas promessas, da vergonha
dos outros. Faço-o porque acredito com todas as forças que houve quem tivesse
feito escolhas sob um clima criado para condicionar essas escolhas. Faço-o
porque de cada vez que ouvi estas frases, me lembrei das Marias Capaz. E
ouvi-as ao longo dos últimos meses, ditas pelos nossos governantes.
“Têm duas escolhas, ou manter o caminho que nos trouxe aqui
ou voltar aos tempos que vos levaram à desgraça, porque sem nós este país volta
ao despesismo. Mas acham que nós gostamos de austeridade? Não fomos nós que a
quisemos, foram aqueles que estiveram antes, aqueles que vocês escolheram que
nos obrigaram a fazer o que fizemos. Fizemo-lo por amor. Porque mais importante
que os nossos interesses é o interesse de Portugal. Olhem para aquela galdéria
da Grécia que decidiu que não queria mais austeridade. O que é que lhe
aconteceu? Vocês é que sabem. Tanta coragem para eleger um grupo de radicais e
olhem como está agora. Debaixo de um novo programa de ajustamento ainda mais
duro, comentada pelo mundo e massacrada pelos mercados. É isso que querem? Se
for isso, votem nos outros. Querem seguir o rumo que nos tirou do pântano ou
embarcar em aventuras para voltarmos a ter a Troika? Quatro anos a por a casa
em ordem e agora acham que vamos novamente para a caos? A escolha é simples. A
estabilidade e o rigor, ou mais uma aventura que só vai conduzir a mais
austeridade. Prometemos que agora não vamos bater, a casa já está em ordem. A
partir de agora tenho tanto carinho para te dar. Foi tudo por amor a Portugal.”
Claro que as distâncias têm que ser devidas. Claro que dos
39 % (dos menos de 60% que foram às urnas), muitos houve que votaram na coligação pelas melhores
razões. Por acreditarem na ideologia, por concordarem com as propostas, por
gostarem dos líderes, por confiança no projeto e nas pessoas. Mas muitos, e
estou certo disto, fizeram-no porque o clima do medo, da chantagem, do racional "sem mim não serás ninguém", resultou.
Um dia o meu país, tenho a certeza, há-de ser um Portugal capaz.
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