Aquilo era demais, parecia uma perseguição. A tal da globalização
de que falam com tanto entusiasmo, o infinito leque de oportunidades, parecia
existir tão-somente para lhe arruinar a vida. Irra que parecia de propósito. Tudo
começou com o clube de Vídeo, e só Deus sabe o quanto lhe custou arranjar
aquele 2º emprego. O dinheiro que ganhava a distribuir listas telefónicas não
era muito e sempre ganhava mais uns trocos ali no clube de vídeo da zona, horário
noturno já se vê. Até às 10 a coisa era animada e entre as 10 e a meia noite aparecia
um ou outro cliente com umas preferências mais ousadas. Esses foram os primeiros
a desaparecer. A TV Cabo começou com os canais de adultos e em pouco tempo, a
freguesia das sessões contínuas começou a rarear. Nem foi preciso esperar muito
tempo até o fenómeno se estender aos restantes géneros. Maldita internet. Nem
chegou a dois anos para assistir à debandada da mais fiel clientela do aluguer
de filmes. O inevitável aconteceu e o clube acabou por fechar.
Mas um homem nunca desiste e já que os filmes estavam na rua
da amargura, e as listas telefónicas rendiam pouco, o cunhado era taxista e
podia dar-lhe uma ajuda. E assim foi. Às seis da tarde pegava no táxi do cunhado
e fazia umas corridas até que o sono deixasse. E ia assim a vidinha até que ao
dia em que a firma da distribuição das listas, … enfim, já se sabe. “Agora já
não há muito telefone fixo, e mesmo os que têm, espalham-se por vários
operadores, e já ninguém usa as listas, pesquisam tudo na net. A bem a bem, só
os vendedores de castanhas e as empresas de sondagens em tempos de campanha
eleitoral para escolherem amostras representativas…. Não temos espaço para si
na empresa”. Tantos anos a carregar listas, escada abaixo escada acima, deixa
uma recolhe a velha, tanto degrau tanto papel e, de quando em vez, lá havia um
assinante que dava uma ajuda mais generosa. Ora bolas outra vez a net e as
novas tecnologias a pregarem-lhe uma partida.
Mas um homem nunca desiste e passou a fazer todo o turno da
noite no táxi do cunhado. O dinheiro não era muito mas, palavra de honra que
era dinheiro honesto. Pelas conversas que ouvia na praça, lá se ia apercebendo
de umas trafulhices que os seus colegas faziam, e dos azares de serviços
pequenos depois de horas na fila do aeroporto, e de clientes que estão mesmo a
pedi-las, muitos deles nem gorjeta davam. Nada disso lhe interessava, o seu
trabalho era transportar pessoas e era isso e apenas isso que fazia, com a
simpatia que lhe era possível. As gorjetas que quase sempre recebia pareciam-lhe
um sinal de que fazia o que devia ser feito. E logo agora, não é que agora aparecem
uns tipos de carros imaculados, todos bem vestidos, muitos deles bem-falantes e
educados a transportar pessoas de um lado para o outro. Tudo por causa de uma
aplicação vinda, pasme-se o azar do homem, da internet. E ainda por cima o
pagamento é feito pela aplicação e o percurso é monitorizado e gravado. Maldita
tecnologia. Os colegas já lhe tinham falado daquilo, mas foi ver com os
próprios olhos. Sim senhora, carros topo de gama, impecáveis e asseados, com
motoristas que pareciam executivos. Aquilo deu-lhe que pensar. E os colegas a
quererem fazer a folha aos tais motoristas, tanto mais que havia uma decisão do
tribunal que decidia sobre a ilegalidade deste novo serviço. Querem lá ver que
a tal da tecnologia lhe ia fazer de novo a folha?
Não, nada disso. É que um homem nunca desiste. Aniceto foi
tratar do assunto e desta vez resolveu fazer justiça pelas próprias mãos.
Apanhou um desses seus colegas de praça a jeito, e disse-lhe das boas “Tu és
mesmo uma besta. Andas com o carro que mais parece uma pocilga, gabas-te dos
trajetos mais longos que propositadamente fazes, irritas-te com os clientes que
te pedem percursos pequenos, tens uma figura tão cuidada quanto a viatura,
insultas quando te dão gorjetas a que chamas miseráveis, diriges-te com
palavrões aos outros condutores e conduzes como se fosses dono da estrada. Achas mesmo que são estes senhores que te
estão a arruinar o negócio? Queres bater-lhes e destruir-lhes o automóvel? Achas
que a atividade deles é ilegal? E aquilo que fazes aos teus clientes, é o quê? Queres
mesmo impedir que eles tenham clientes, nem que seja ao estalo? És tu o culpado
do sucesso deles. Vai-te esbofeteando até teres consciência do que andas fazer
aos teus colegas que têm brio no que fazem. É que se essas pessoas resolvessem
fazer o tipo de justiça que tu fazes, tu, e os outros como tu, iam passar
tempos muito duros. Cretino.”
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