quinta-feira, agosto 29, 2013

A primeira e a terceira

A ria tem destas coisas. Atrai-me.
A primeira foi por vontade própria. No fundo só não sabia onde estava o fundo. A margem estava tão perto que achei que era uma boa altura para saltar para fora de bordo e ajudar à manobra de ancorar a embarcação. Escolhi a proa e lancei-me para ficar com água pelos joelhos. Entrei de pés e a água passou os joelhos, a cintura, o pescoço, a cabeça e submergi. Tratou-se só e apenas de uma incorrecta leitura de profundidade.
A terceira foi por desequilíbrio. Na popa era necessário uma manobra que envolvia soltar um pequeno mecanismo no exterior da embarcação. Tudo parecia correr bem, mas como se sabe a ria é traiçoeira e tem ondas capazes de fazer inveja ao canhão da Nazaré. Ora a embarcação ficou ainda mais inclinada e o meu ponto de sustentação desapareceu. Foi como se o chão se fosse embora. Desta vez não mergulhei na totalidade, apenas até à cintura. Ou o externo pronto. Os mamilos tenho a certeza que se safaram, mas o  mesmo não posso dizer do telemóvel, nem da carteira. O resto da manhã foi a passar os cartões por água doce e a dar arroz ao telemóvel. A lavagem de dinheiro correu bem, mas o estupor do gadget de fraca qualidade ainda não saiu do coma induzido.
Esperemos por dias melhores, mais secos, mais longe da ria.

terça-feira, agosto 27, 2013

A segunda queda

Ainda não descrevi a primeira, mas lá iremos. Não existe regra que obrigue ao respeito pela ordem cronológica dos acontecimentos.
No regresso da praia parámos no meio da ria para a criançada dar uns mergulhos. Largámos a âncora e alguém comentou a existência de alguma corrente. Sem qualquer ordem as crianças lançam-se à água em estilos mais ou menos conseguidos. O mais novo também. Não demorou muito até o ouvir gritar "Tiooooo. Trave o barco que eu não consigo apanhá-lo". Meu rico príncipe que achou que a corrente da ria era uma brincadeira do comandante da embarcação.
Ora para dar meia volta e ir buscar o  náufrago envolvia recolher a âncora, ligar o motor, fazer a manobra e proceder ao salvamento. Atirei-me à ria pela segunda vez. Nadei até ao aflito António e por pouco não o esbofeteei porque se agarrou ao meu pescoço como se a vida dele dependesse disso. Mandei-o serenar e combinámos que íamos ficar a boiar e a nadar devagarinho até nos virem buscar. Assim fizemos.
Olhei para a embarcação e ainda a manobra de recolher a âncora decorria. Eis que apareceu um bote de borracha com um senhor de barbas brancas e sunga preta que nos deu boleia até ao barco. Hosana nas alturas. Aquele senhor só podia ser Deus. Nunca o imaginei assim. De sunga preta ainda vá que não vá, afinal Deus não vai para novo e não estranho que esteja preso a modas mais antigas. Agora o bote de borracha com um motor de dois cavalos é que me surpreendeu. Sobretudo porque o filho Dele tem aquela mania irritante de andar sobre as águas sem esquis. E mesmo com esquis, andar em cima das águas é lixado por causa da esteira e da ondulação. Seja como for foi Deus que nos rebocou até à embarcação e para mim, naquele momento, o bote de borracha pareceu-me um iate de luxo vindo directamente do céu. Para o pequeno António também, que aprendeu que o mar tem vontade própria nem sempre coincidente com a nossa. Eu fiquei a saber muito mais sobre Deus e sobre a respectiva indumentária. Na capela Sistina, Miguel Angelo não foi muito justo com Ele. Ainda que de sunga preta, estava com muito melhor aspecto que no tecto da capela. E tinha um bote de borracha caramba. Deus não anda de nuvem, anda de bote de borracha.

Sotavento

O sotavento algarvio é um outro Algarve. Mais não seja porque não tem a rua da Oura nem Albufeira onde se concentram centenas de jovens ingleses, com as hormonas do crescimento à razão inversa do bom gosto, do bom senso e da tolerância ao álcool. Os adolescentes ingleses vomitam muito  e não sabem que peúgas e saltos altos são uma combinação pouco, ou mesmo nada, atraente. Por seu lado, o sotavento Algarvio tem mais moluscos bivalves, porque tem mais rias.
Estas rias não só nos dão uma trabalheira a ir para a praia (envolve sempre andar de barco ou atravessar pontes), como nos brindam com algumas jóias resistentes às investidas turísticas. Cacela Velha é uma destas jóias, que além do encanto paisagístico, tão consensual que até irrita, tem o encanto gastronómico, ainda mais consensual e portanto mais irritante.
Do apartamento de férias vê-se a ria o que é bom. Para nós e para as melgas que se juntam a partir do fim da tarde.
Para ir até à praia, apanhamos o barco na ria e, pasme-se, tenho caído à ria sempre que fazemos a travessia. Não me atiro por acidente, atiro-me com convicção. Da primeira e da segunda vez tive o cuidado de me livrar da carteira e do telemóvel antes de me atirar. Na terceira convidei-os para o mergulho. Aparentemente o telemóvel não gostou da brincadeira. O amuadinho da Smasung desde essa altura que não dá de si. Não gosto de telemóveis com tiques de falta de educação. Hei-de achar uma forma de o pôr no seu devido lugar. Eventualmente o lixo.