As férias em cruzeiro têm uma dinâmica peculiar. São férias em hotéis flutuantes, predominantemente com vista para o mar, onde alguns poucos milhares de pessoas convivem de forma mais ou menos pacífica e acham genericamente boa ideia estar à varanda. Mesmo que para vomitar. Eu pessoalmente não acho muito bonito, e não deve ser, porque nunca ouvi ninguém dizer “És tão bonito como um cruzeiro que fiz no mediterrâneo”.
Natércio gosta de fazer cruzeiros. Enjoa frequentemente, nada como um prego, fala um inglês miserável, tem pavor de gaivotas mas adora conhecer pessoas e ali, os restantes 2100 passageiros, não têm muito por onde escapar. É vê-lo a estudar os parceiros de viagem à medida que embarcam e a desdobrar-se em atenções com este ou aquele de acordo com a apreciação inicial. Grosseira porque superficial, mas muitas vezes eficaz. Chama-lhe perícia e gaba-se dela despudoradamente.
“Aquela ali foi despejada pelo filho no navio. A mulher já não vai para nova e os lares decentes estão pela hora da morte. Deve ser uma estreia. Que quantidade de malas absurda para duas semanas. Aposto que traz roupa de cama. Quando descobrir a sala de bingo, esquece-se que está num cruzeiro e vai passar o resto do tempo a riscar números e a gritar bingo quando fizer uma linha. Ainda a apanho na minha mesa num destes dias.”
“Olha-me que cromo. Cana de pesca!!! Com sorte trouxe o isco e tudo. Eh eh eh. Deve sair daqui com dois ou três tubarões debaixo do braço. Ó homem, hás-de estar na proa que eu sigo para a popa. Nem no bar depois de me atascar em margueritas te quero por a vista em cima.”
“É lecasssssss. O que é aquilo? Será que vem sozinha? Se naufragarmos nem precisa de colete salva vidas. Com aquelas bóias. Tem a marca no dedo, mas não usa aliança. Divorciada de fresco até aposto. Querem-me lá ver que saio daqui noivo? Ou te encontro na disco, ou vais parar à minha mesa num destes jantares.”
“Olha os Martins. Estes já os conheço do Norte de África em 2002. Porreiraços. Ele está igual e ela deve ter feito umas plásticas. Companhias certificadíssimas para as passeatas turísticas. São um prato estes dois. Que sorte Natércio!!!”
Se um dia fizer um cruzeiro sigo os sábios ensinamentos do Natércio. Divido as pessoas em grupos e ajo em conformidade.
Hei-de ter um grupo das “pessoas com quem divido o camarote” que são a família lá de casa e mesmo assim divido-o em dois. Putalhada para o camarote do lado.
Grupo das “pessoas com quem janto à mesa e bebo um copo no bar”. São os amigos mais próximos, de convívio fácil e muito saboreado.
Grupo das “pessoas com quem convivo no convés.” São as pessoas mais ou menos conhecidas de convívio agradável. Trocam-se umas piadas e eventualmente ganham estatuto de jantar juntos conforme a empatia criada.
Grupo das “pessoas que encontro na sala de jogos”. São as pessoas que aderem à mesma actividade, não necessariamente simpáticas, não obrigatoriamente conhecidas. Estão lá porque um jogo de grupo é isso mesmo. Um jogo de grupo.
Grupo das “pessoas que enfiava no bote salva vidas em caso de naufrágio”. São os dos camarotes, mais os dos jantares e um ou outro do convés, os idosos e as crianças e algum pessoal de bordo que sabem sempre o que hão-de fazer caso a situação fique dramática. Estão lá porque são próximos, ou porque são úteis ou porque simplesmente não se lhes recusa lugar no bote salva vidas.
Grupo “homem ao mar” ou “pessoas que atirava para fora do navio”. Se pudesse escolher, nunca teriam embarcado. Agora estão lá e é uma chatice mandá-los borda fora.
Se um dia fizer um cruzeiro, levo etiquetas.
E se o ? Não. Não existe essa coisa de grupos de amigos. Ah existe ? E se o Facebook fosse um cruzeiro ?
4 comentários:
André, entendo muito bem o seu ponto de vista, mas acontece que no meu caso, por exemplo, até tenho alunos que são 5 estrelas, e não me importo nada de os acrescentar à minha lista de amigos, o que não quer dizer que eu queira que eles conheçam a minha vida pessoal e familiar. Para isso criei um grupo só deles (dos alunos) que não podem ver as minhas fotos da minha vida pessoal/familiar...Nestes casos, acho muito util a criação de grupos no facebook.
Grande André. Fiquei sem perceber se pertences a algum dos perfis que narras com mestria. Se isso não te saiu de experiência própria, a tua capacidade narrativa surpreende ainda mais. abraço.
E se o FB fosse um cruzeiro?
E poderá ser mas, lá, somos passageiros e somos capitães. Divertimo-nos observando os outros que estão no mesmo barco, fazemos conversa com quem desejamos e paramos nos portos que queremos com horário à nossa escolha. Certo?
É bom viajar entre muita gente e sentir-se isolado entre o céu e a terra.
Adorei. Está espectacular.
Está decidido. Próximo programa em conjunto (com a minha familia incluida) vai ser um cruzeiro. Trocamos a herdade do sobroso por um cruzeiro e tu convidas o Natércio.
Devias lançar uma série de crónicas com as aventuras do Natércio a bordo dos vários cruzeiros.
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