Do que ele gostava era a luz a brindar as linhas metálicas até à longínqua curva. Deixava que o sol se aproximasse do horizonte, para que os brilhos se alaranjassem e os trilhos se tornassem oiro. O maior dos segredos da alquimia estava ali aos seus olhos mesmo antes do sol se pôr. A linha de combóio toda ela feita de oiro durante uns minutos. Não pensava em mais nada. Tinha-se habituado àquela vida, guarda cancela num dos tantos fins do mundo, onde tudo acontece à tabela. O combóio correio, o nascer do sol, e ao fim da manhã o regional. A tarde desfaz tudo o que a manhã constrói, e sempre pela mesma ordem excepto em Julho que o pôr do sol tarda. O combóio correio de regresso à capital de distrito, o sol a pôr-se e por fim o regional. A cada passagem do combóio, o mesmo ritual, o apito ao longe, as cancelas fechadas e a bandeira. Se à curva não se notasse pressa na locomotiva, ele adivinhava-lhe a maquinista. Era ela quem guiava o destino da fileira de carruagens, sorriso aberto e olhos pequenos. Jamais lhe dirigiu a palavra, antes o sorriso, sempre retribuído e o brilho nos olhos que só ela percebia na fracção de tempo que a tangente da locomotiva à cancela permitia. Pouca terra, pouco tempo, e o coração compassado com o combóio. Bate que bate, pouca terra pouca terra. Foi assim durante tanto tempo, sempre igual, sempre diferente a cada passagem, a cada sorriso. E quando a chuva lhe abençoava a passagem, escancarava o sorriso molhado.
Hoje, as ervas mal deixam perceber a linha, do casebre sobram as ruínas. O homem que até estudou na faculdade, tinha feito as contas e voltou a fazê-las. Inviabilidade financeira para aquele troço, podia ler-se no relatório de rigor inatacável. Não se referia ao guarda cancela, tampouco à maquinista. Era o número de passageiros e os poucos milhares de escudos dos bilhetes que lhe inferiram o parecer. Mesmo junto à linha, já caída, a placa com o aviso “Pare escute e olhe. Cuidado ao atravessar a linha. Um combóio pode esconder outro.” Um combóio pode esconder um grande amor.
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