A estante da sala dos meus pais desapareceu.
Aquela estante que estava lá desde que me conheço e que me acompanhou durante quase trinta anos. Mais ou menos até aqueles dias em que, com 28 anos, já tinha vergonha de pôr a chave à porta, sempre à espera que um deles acabasse por perguntar “Ainda moras aqui ? Sabes que com a tua idade já estávamos casados e com filhos?”. A verdade é que as candidatas eram muitas e o processo de selecção foi complicadíssimo, pelo que só após longos anos de triagem acabei por optar por aquela que tinha as mamas maiores (cheira-me que hoje vou dormir no sofá).
Falava eu da estante, que desapareceu por troca de um plasma que ainda não conheço. Essa estante, que ao que parece foi desenhada pelo meu pai, foi desde sempre cúmplice da minha infância e adolescência. Uma lista de memórias misturadas nas prateleiras de livros, nas gavetas de fotos e nos armários de bebidas. A saber:
- os livros da Mafalda, daqueles mais compridos que altos, de várias cores e com duas tiras por página
- o livro dos anarcas, que tinha frases como “Portugal é um país geométrico, resolvem-se problemas bicudos, em mesas redondas, com bestas quadradas”, “Pratique desporto, faça tiro ao Álvaro” e “Soares tem a tripa cagueira ligada ao cérebro, quando fala, fala merda, quando caga, caga sentenças.”
- as fotos da ida à serra da Estrela e dos verões com as primas Rita e Sara em Tibaldinho
- uma garrafa de fazer soda que tinha umas recargas de gás, capazes de colocar qualquer bisnagas de carnaval a um canto. Essencial portanto para a consolidação da posição social, na escola da Câmara lá do Bairro.
- a Araldite em duas bisnagas, cujo o conteúdo se misturava para fazer cola, mas que por uma razão ou por outra nunca funcionava e aquilo que eu partia acabava sempre por ser descoberto
- o atlas verde e o guia da vida saudável que tinha umas páginas geni(t)ais sobre a vida sexual
- os livros do “Pão com Manteiga” e as “Crónicas de um bom malandro” que, não sei porquê, estão na mesma área do meu cérebro
- a primeira televisão a cores lá de casa (a segunda também). A prateleira que sobrou com a entrada da televisão e que nos braços do sofá, serviu para tantas horas de estudo
- uns maços de cigarro Português Suave com filtro dos tempos em que a minha mãe fumava um cigarro por semestre, e que eu roubava para fumar às escondidas
- as garrafas de bebidas que eu e os meus colegas de faculdade quase limpámos quando fizemos uma festa lá em casa durante umas férias dos meus pais. Acabámos por ser expulsos pela minha irmã, que tinha exame de anatomia nessa semana e não estava para nos aturar bêbados em casa (foi uma injustiça porque a bebedeira foi-se construindo à volta de tão nobre motivo – brindávamos ao general Kadafi pela forma como resistia e afrontava o poder autoritário do imperialismo Americano).
Outras memórias estão presas aquela estante, mas por um motivo ou outro, ou simplesmente porque a memória é selectiva, são estes que aqui escrevo.
A madeira que desapareceu da casa de Campo de Ourique não é importante, a estante e as prateleiras de memórias, ainda existem assim, meias desarrumadas e dispersas. Mas também o arrumo e a organização, nunca persistiu na dita estante. Felizmente.
Sem comentários:
Enviar um comentário