... anterior bem podia tratar-se de um história para um dos meus cartões de boas festas. Há oito anos anos que deixei de os enviar. Fazia-o todos os anos, sempre à última da hora. Comprava postais com uns desenhos mais ou menos engraçados, escrevia uma história para cada desenho e enviava-os aos amigos.
Foi assim durante uns tempos e o feed back era sempre um alento para os fazer no ano seguinte.
Naquele ano foi mesmo em cima da hora. Dia 22 à tarde. A estação dos Correios era no mesmo edifício em que trabalhava e fechava às 17:30. Se a coisa desse para o torto, podia atravessar a rua e entregá-los até às 18:30 numa outra estação de horários mais generosos.
Lá escrevi as histórias, imprimi-as, colei-as nos postais, assinei-as com alguns escritos orientados aos destinatários, escrevi os envelopes, fechei-os e corri até lá abaixo para comprar os selos e enviá-los. Passavam dois minutos da hora e a senhora, invadida pelo espírito de Natal recusou-se a abrir a porta. Ainda a estou a ver de olhar frio e calculista, do lado de lá da porta de vidro, perante a minha figura, de joelhos a implorar-lhe que me aceitasse os cartões. Não o fez, a porca.
Lá resolvi atravessar a rua enquanto praguejava com a gorda dos correios. Na realidade não era uma rua, era uma avenida, e estava em obras, por causa de um túnel, e ainda não tinha alcatrão e chovia como nos filmes. Um mar de lama, uma ilha de cimento a meio e a parte final em gravilha. Era esse o desafio. No mar de lama fui um autêntico marinheiro e cheguei rapidamente a bom porto. A ilha de cimento. Reparo que o piso em gravilha está mais abaixo do que pensava e havia algo lhe parecia dar vida. Era a chuva, só podia ser. Preciso de saltar para a gravilha, que apesar do temporal tem um ar sólido. Saltei. E em vez de truf fez ploff.
Pois de sólido é que nada tinha. Era pastosa, quase liquída, a gravilha, mal iluminada, disfarçava uma piscina de lama na qual mergulhei até quase à cintura. Pés, pernas, mãos e braços. Os postais? Onde é que estão os postais? Que se lixem os postais. Estou com lama até à ponta dos cabelos. Como é que vou trabalhar naquela figura? Lá regresso eu com um rasto de lama atrás de mim. Entrei às escondidas no imenso átrio central. Corria de uma coluna, para a próxima evitando que alguém me visse me visse. Cada vez que dava um passo, saía dos meus sapatos um esguicho de lama. Consigo chegar a uma casa de banho. Lá me tentei recompor. Tirei a maior parte da lama dos sapatos, do corpo e das calças. Apanho o elevador já quase a chorar de desespero, a sangrar do joelho, com as calças rotas. Vou escondido até ao balcão perto da área onde a Ana trabalhava. Chamei-a baixinho, com a discrição que a situação exigia
"Pssst Ana ajuda-me aqui se faz favor, nem sabes o que me aconteceu."
Uma gargalhada sonora que se ouviu em todo o edifício. "Aiiiiiii que horror. O que te aconteceu. Estás tão giro. R, C, MC já viram o André?" Só não me apeteceu enfiar num buraco, porque de buracos já tinha a minha dose. Que engraçado que o André estava. O V., colega da Ana, foi o único que na realidade me ajudou. Apareceu com umas calças de fazenda e disse-me, "Troque lá de calças que até lhe faz mal andar assim. Não, não faz diferença nenhuma. Oh homem elas estão aqui para uma emergência, e se isto não é uma emergência, não sei o que será". Fui até à casa de banho, com as calças de fazenda do V. A questão é que o V mede uns bons 15 cm a menos do que eu e é bastante mais magro (o que obviamente não quer dizer que eu seja gordo, o V é muito magro). Quando me vi ao espelho dentro das bermudas por apertar é que me vieram as lágrimas aos olhos. Optei pelas calças rotas, sujas e encharcadas e devolvi as bermudas ao V. Nunca mais escrevi postais de Natal e os últimos estão depositados sob o alcatrão da João XXI.
Quando, daqui a uns milhares de anos, forem descobertos, pode ser que este documento possa dar-lhes o contexto histórico que merecem.
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