quarta-feira, abril 17, 2013
Onde o espaço é quase tudo e o tempo é quase nada
Já estive em jantares de amigos em que as pessoas estão menos próximas que naquele restaurante ínfimo. Mesas encavalitadas a convidarem à conversa entre os fregueses. “Negócio de família e olhe que a sala já foi metade do que é agora”. Uma cerveja e tremoços enquanto se espera que a família do canto liberte a mesa. Conversas à solta.
Ainda mal chegada, recebida com entusiasmo pela família, a senhora de cabelo curto e corpo deformado não se coibia na conversa com quem queria. O casal do lado, generoso na disposição, pareceu gostar da disponibilidade para a conversa. A senhora elogiava o tamanho do cabelo da mulher. “Com esse comprimento, deve ter pelo menos dois anos sem ver tesoura. Só aparar as pontas, presumo”. A mulher sorriu e confirmou algum tempo sem um corte drástico. “Um milímetro de dois em dois dias. É essa a velocidade a que cresce o cabelo. Este aqui já tem dois meses.”
Exibiu com orgulho quase três centímetros de cabelo. Não era difícil adivinhar-lhe a recente quimioterapia. A mesma cruel e puta doença de sempre. Maldita seja. E ainda assim, os olhos dela brilhavam e ainda assim a energia contagiava quem a ouvia. A família mimava-a com elogios à beleza, ela assumia a personagem e mimava-se também. O casal do lado, apanhado na onda de elogios, ofereceu-se à conversa, quase cúmplice. A gargalhada do homem, inconfundível para quem o ouve na rádio, denunciava-o em cada momento de boa disposição.
No final do jantar, por alturas da sobremesa, a senhora de cabelo curto anunciou o truque para que o bolo de bolacha ganhasse outras dimensões: umas gotas de água do vimeiro. Tirou da mala uma pequena garrafa e abençoou o bolo com algumas gotas. O homem do casal do lado, pediu licença e cheirou a garrafa: “Olhe que eu estive no Vimeiro, e não me lembro desta água por lá”.
E assim foi o jantar. À pressa porque a hora do concerto a trazia, devagar porque cada frase ouvida parecia querer ficar, depressa porque quando assim é nem se dá pelo passar do tempo.
O concerto não foi assim tão bom, só que da noite ficou o jantar. No tempo apertado, no espaço tão curto, as cumplicidades nascem depressa, quando regadas, quando risadas, quando alegrias de viver.
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