terça-feira, março 31, 2020

Apocalipse - dia quinto

Os fins de semana, e por vezes os fins da tarde são dedicados a actividades domésticas. A senhora cá de casa está também em quarentena e não há maneira de se entender com o tele trabalho. O pó acumula-se e o cão parece que está a mudar o pelo todo. Limpar o pó é chato. Aquilo escolhe lugares estranhos para ajuntamentos sobretudo em locais de difícil acesso. Atrás da televisão, por cima das portadas, nos roda-pés, por cima dos quadros e em tudo o que é friso. O pó é inconveniente como um repórter da cmtv, só que se consegue tratar dele e não trabalha numa empresa que tem um departamento jurídico maior que a redação.

Cá em casa há panos para tudo e produtos para mais coisas ainda. Móveis em madeira, móveis brancos, vidros, electrodomésticos, cozinhas e casas de banho têm panos diferentes e produtos diferentes. Fazer uma divisão, digo assim porque parece mais profissional, é semelhante a ir ao atelier da Joana Vasconcelos quando ela fizer uma nazarena de trapos e embalagens.

Parece-me que tenho umas camisas para engomar e aquele ferro em caldeira parece uma máquina do demo, cada vez que carrego numa tecla acho sempre que o Dom Sebastião vai ser sair dali no meio de tanto vapor. Camisas também não é fácil e estou a tentar criar uma técnica que simplifique o processo. A única que parece resultar até agora é usar t-shirts em vez de camisas, mas eu chego lá.

domingo, março 29, 2020

Apocalipse - dia quarto


Diz que o tele trabalho funciona melhor se mantivermos as rotinas de escritório. Levantar cedo, tomar banho, vestir uma roupa adequada a qualquer video-conferência que possa surgir o que pode incluir camisa, blaser e calças de fato de treino, embora pessoalmente opte pela camisa,pullover e calças de ganga, tomar o pequeno almoço e passear o cão. A menos da ausência do trajecto casa escritório, a manhã é em tudo muito semelhante a uma manhã de trabalho até que se aproxima a hora de almoço. Ora eu não tenho por hábito cozinhar o almoço quando estou no escritório e agora em quarentena as coisas não são bem assim.
Além do requisito de cozinhar o almoço, esta quarentena tem sido farta em desejos gastronómicos. Um destes dias fui invadido por uma vontade súbita de cozido à portuguesa e, entre descobrir que não conseguia via Uber-eats,  encomendar as carnes no talho, e preparar o cozinhado, levei cinco dias até o conseguir fazer. Além do cozido, já houve almoços de peixe ao vapor, chocos na grelha e bochechas de porco. Eu que despachava tantas vezes o almoço com um mc Donalds, um H3 em dias especiais, uma sandes de presunto e queijo da serra ou um prego. Não é do tempo e do esforço que falo. É mesmo da gula. É que se o vírus tem uma curva monitorizada, por aquilo que eu vejo nas redes sociais e pelas pessoionhas que estão comigo a fazer esta quarentena, a curva da gula atingiu toda a população e não há forma de lhe inverter a derivada. Devia haver um boletim diário sobre o número de infectados pela gula, e pela ansiedade, e pela neura também.
Além dos meus cozinhados, nesta casa já houve petits gâteuax feitos de origem, gnocchi feitos de origem, caril de vária ordem, doces de ovos moles, bolo de brigadeiro e biscoitos de todos os tipos. Esta quarentena protege-nos do contágio do virús mas está longe de nos proteger do nosso próprio e voraz apetite.
À cautela, a balança cá de casa, está isolada no caixote de lixo desde o início de março. Não vá ela querer dar algum recado a alguém mais impaciente e abrir um lenho a alguém que passe na rua quando for arremessada janela fora.

sexta-feira, março 27, 2020

Apocalipse - dia terceiro

Tendencialmente, os passeios do cão e as compras pertencem-me. Cruzo-me com as pessoas que, nas respectivas casas, também ganharam o sorteio de passear os cães e vou a um minimercado de bairro que existe há pelo menos 30 anos muito graças à qualidade do bacalhau que vende. Já sou muito amigo dos donos e dos empregados do minimercado e eles tomam conta do cão à porta enquanto eu faço as compras. No primeiro dia, como quem não quer a coisa, mostrei-lhes dois ou três truques que o cão faz e agora, enquanto eu faço as compras, ouço a Deolinda a explicar à senhora que está na rua à espera da vez para poder entrar, que o Matias é o cão mais esperto que ela conhece:
- garanto-lhe que ele sabe morrer. Ó Matias morre lá. Bang Bang. Juro. Quando o dono lhe diz bang bang ele atira-se para o chão e morre um bocadinho. Palavra de honra.

Por falar em senhora à espera da vez, o que é que fazem tantas senhoras e senhores assim a modos que, como hei-de escrever isto, com idade para terem muito mas muito juízo, sempre a laurear a pevide na rua ? Como se o facto de terem nascido pouco depois da gripe espanhola lhes desse equivalência para este corona. Logo agora, que podem pedir as compras do supermercado e da farmácia, embirraram que haviam de sair de casa e logo todos de uma vez. Parece o Cocoon. O bicho anda aí e infelizmente não é verde florescente, nem do tamanho de um caniche. O bicho é muito pequeno e apanha-os num instante. Saiam da rua senhores, por favor, que é muito perigoso. Usem os serviços que os vizinhos e as juntas de freguesia estão a disponibilizar. A sério.

Tempos estranhos estes. Os anciãos a querer passar o dia na rua, os adultos a querer ir para os empregos e os adolescentes fartos do sofá. Mais uns dias e ainda vamos ver a Joacine a querer abandonar o parlamento. Paradoxos do apocalipse, já se vê.

quinta-feira, março 26, 2020

Apocalipse - dia segundo

A quarentena, não fazendo por mal, obriga-nos a prestar atenção a alguns detalhes que quase nos passavam despercebidos dentro da própria casa, ou nas vizinhanças próximas.

Não fazia ideia que tinha tantos vizinhos e, por incrível que pareça, a maior parte deles interage com bom dia e boa tarde e chegam a sorrir. Até os do 2º esquerdo do nº 27, pasme-se. Parecem uma republica estudantil e até há dois dias atrás  tinham uma escala para irem à varanda fumar e comer. Entretanto ou baixaram o nível de alerta para laranja ou enrolaram-se todo uns com os outros que já vai na segunda noite que fazem raves na varanda e na escada todos a menos de um metro uns dos outros e bebem, cantam, conversam e riem. Não me incomoda e até gosto de ouvir a agitação. Se se lembrarem de cantar canções de tuna académica, chamo a polícia e a direcção geral de saúde. Até lá, podem continuar.

Há três rapazes mais ou menos miúdos, mais ou menos adultos, que vivem cá em casa e que também parecem ser muito simpáticos. Até cozinham de quando em vez. Um de forma mais consistente, outro sempre que necessita e o do meio sempre que não consegue convencer ninguém a cozinhar para ele. Além de cozinhar, começam a sorrir e já dão os primeiros passos fora do quarto. Não tarda começam a falar connosco. Parece que estamos a reviver a altura em que eram bebés. Aposto que mais duas semanas e a rainha convence-os a voltar a vestir de igual e lá para o final de Abril ainda voltam aos cueiros e podemos andar com eles ao colo. Estou doido para que digam pai. Ao fim da tarde estão um bocadinho agitados mas nada que umas colheres de atarax não possam resolver.

O cão está cada vez mais profissional e hoje foi o cão que melhor se portou na conference call das 10, ao contrário do cão do responsável técnico do cliente que ladrou durante a reunião toda. Estou muito contente com o desempenho dele e acho que o vou promover de rookie a associate consultant e fazer cartões de visita para ele.


terça-feira, março 24, 2020

Apocalipse – dia primeiro

Está bem que as aulas foram canceladas há quinze dias, que eu já estou em tele trabalho há dez e que o estado de emergência foi declarado há cinco, mas a escrita rege-se por outras métricas e dia primeiro seja.

Estamos os cinco e o cão enfiados em casa e aos poucos e em tempos diferentes vamo-nos habituando a novas rotinas e arranjando estratégias para atenuar, esbater e achatar a muito pessoal curva do desespero.

A coisa prometeu ser animada logo no primeiro domingo de recato doméstico. É que provavelmente íamos ter que ficar em casa e é preciso não descurar a actividade física que é tão importante e vai daí, de repente estou a sair da decathlon com uma geringonça de step ao colo. Percebi logo que dali até ficarmos todos  infectados ia ser um instantinho. A geringonça de step tem uns pés deslizantes e uns elásticos e o mais certo é um de nós sair dali em duplo empranchado até à esquina de um móvel, abrir um lenho na cabeça ou partir um ou outro osso e ter que ir às urgências. Daí até fazer parte dos números diariamente divulgados pela DGS ao início da tarde, é um pulinho, já se vê.

Sobre a quarentena em si, o cão é quem parece ter maiores dificuldades de adaptação. Habituado a manhãs e tardes entregues à preguiça e à sesta, há duas semanas a esta parte que está demasiada gente em casa, sobretudo na cozinha e ele não resiste aos barulhos da caixa do pão, da torradeira a saltar, da lata dos biscoitos a abrir e há quinze dias que não prega olho durante o dia. Acresce que de repente toda a gente parece muito interessada em levá-lo à rua. Até bolhas nas patas o desgraçado do bicho apresenta com tanta ida à rua. Além de tudo isto, o bicho está talhado para uma carreira de consultoria. Não falha uma video conferência, normalmente com intervenções mais pertinentes que qualquer dos intervenientes. Também gosta de conference calls, porque pode ladrar à vontade o que é muito agradável para todos os participantes. Os auriculares parecem querer explodir no tímpano quando chega aos latidos mais agudos. É o animal ideal para ter em casa quando estamos em quarentena em regime de teletrabalho.

As faculdades, os ginásios, e as empresas promovem tele cenas para cada um dos cinco, e não há hora em que a casa não esteja a ser transmitida para qualquer sítio. Parece o bigbrother que por acaso não começou derivados do coisovid. Para evitar a existência de horas sem emissão, ainda existem as aplicações houseparty de cada um de nós para promover tele conversas, tele aniversários e tele bezanas sempre que tal se justifique. No sábado, o meu filho mais velho convidou-me para ser o par dele num tele quizz. Que programão, uma coisa de pai e filho, muito comparsas. Só revelou a minha total inabilidade para saber o nome de países com umas bandeiras que eu nunca tinha visto, ou o ramo de actividade da Nokia quando foi criada no século XIX, ou o nome original dos pauzinhos chineses. Está bem que me enganei e chamei crise de 1343-1345 à crise de 1383-1385, mas a partir de certa idade quarenta anos são uma ninharia e a resposta devia ter sido considerada correta. Conclusão, acho que o bochechas não me volta a convidar para um quiz pelo menos até à quarentena do covid-24.

No outro prato da balança, confesso que durante duas horas inteiras, dei bençãos e agradecimentos pelo recato e proibição de ajuntamentos promovidos pelo estado de emergência. Domingo às 19 horas, o virus permitiu cancelar a reunião de condomínio onde seriam abordados temas fraturantes como a coluna de esgotos e as infiltrações, a nova porta da rua e o ferro a imitar alumínio e a divisão em lotes para arrumos da casa da porteira que tem as humidades de Sintra e de São Martinho do Porto num espaço de uns 30 metros quadrados se tanto.

Amanhã tenho uma reunião e ainda não sei se hei-de reunir na cozinha ou se num dos quartos. Depende da escolha dos atletas cá de casa para as aulas de ginástica e para a sessão da geringonça do step. Vou perguntar ao cão onde é que lhe dá mais jeito.