terça-feira, outubro 13, 2015

Costa Concordia

Os resultados eleitorais são o que são e sobre eles não vale a pena tecer grandes considerações. O PaF ganhou as eleições sem maioria absoluta e o PS perdeu. Posto isto, Pedro é chamado a Belém e António à comissão política. Pedro promete a Aníbal procurar uma base de sustentação para formar um governo que dure quatro anos, Costa promete ao PS dialogar em 360º para procurar consensos. Pedro teve duas reuniões com António e levou Paulo com ele. António conversou com Pedro, com Paulo, com Catarina, com Jerónimo e com o André. Eis que então começa a surgir a possibilidade de António formar governo com ou com o apoio do Bloco e / ou a CDU.
Este cenário, que não passa disso mesmo, de um cenário está a deixar muita gente nervosa, a desenterrar muitos fantasmas, muito irritada e sobretudo numa excitação descontrolada perto da histeria que lhes está a tirar algum discernimento de raciocínio.
Percebo alguma irritação porque António está a procurar outros consensos enquanto Pedro e Paulo continuam  fascinados pelo umbigo um do outro, pouco mais fazendo que reunir com António em tom de quem anda a toque de caixa para não perderem o comboio. Convém lembrar a estes senhores que ganharam as eleições e que têm um governo e um programa a apresentar e que colocarem-se como espetadores não abona muito a favor deles.
Percebo alguma frustração e desencanto da direita com a coligação, porque votaram num programa da continuidade, e agora Pedro e Paulo querem governar pelo programa do António.
Já o nervosismo com as conversas que António tem à sua esquerda, é-me muito difícil entender.
Alguma vez Aníbal chamaria António para formar Governo?
Alguma vez o PCP faria parte de um governo PS ou apoiaria um governo PS durante toda uma legislatura? Axandrem-se. Nem o PCP cede tanto, nem o PS muda tanto.
Com certeza que não, mas esta possibilidade de, passados 40 anos, a esquerda poder entender-se torna tudo muito incómodo.
Pessoalmente, dá-me um gozo bestial que haja maior entendimento entre os partidos de esquerda e ainda maior ao ver a cara de caso de Paulo e Pedro e o nervosismo disparatado de quem os acha uma escolha razoável.
Também gosto de saber que o PCP e o BE, em pouco mais que uma semana, passaram a fazer parte do arco de governação e que Paulo inventou um novo arco: o arco europeu. Só ainda não percebi qual é que tem maior diâmetro: o da governação ou o europeu?
Só espero que o António seja um tudo nada mais divertido na liderança deste processo, já que parece ser o único com vontade de o fazer. Ao menos que o faça em grande.
A meu ver, o António não é homem não é nada, se na próxima reunião com o Pedro e Paulo não trouxer o TGV e o novo Aeroporto para a mesa das negociações.
E a libertação do preso político.
E o carro eléctrico.
E as novas oportunidades.
A terceira travessia do Tejo não é preciso, porque com o atual diâmetro do arco da governação, basta colocar o CDS-PP no barreiro e o Bloco no Terreiro do Paço. No ministério das finanças por exemplo. 

segunda-feira, outubro 05, 2015

Portugal Capaz

Somos um povo de brandos costumes, do cala e do consente, das Amélias dos olhos doces, das Marias vida fria à espera que a vida lhes dê a oportunidade das Marias Capaz. As mulheres da porrada de todos os dias, da violência, do insulto, do sexo à bruta, da ameaça, das promessas quebradas, dos sonhos desfeitos, das marcas no corpo, das feridas da alma, da vergonha, do medo, da vida desfeita. O que as separa da fuga? O que lhes impede a denúncia? O que as faz reféns? Porque foi só uma vez, porque no namoro ele lhe dizia coisas tão bonitas e a respeitava tanto, porque tem andado a beber, porque a ama daquela maneira tão peculiar e além desse amor não tem outro, porque não tem para onde ir, porque ele ia arranjar maneira de lhe por as mãos em cima, porque ele ia ficar tão desesperado, porque os filhos precisam deles juntos, porque ele está desempregado e nem sequer é violento, porque o que é que os outros iam dizer, porque ia viver do quê, do ar? E até quando? Até ficar sem dinheiro e precisar dele outra vez?
Não, não são elas as cobardes. Em cada uma delas há uma capacidade infinita para sofrer, para amar, para perdoar, e para lá de tudo isso para um dia se tornarem numa Maria Capaz. A cobardia está em cada um deles. Pelo poder da besta, pelas frases de chantagem, pelas promessas quebradas, pelas falsas declarações de amor, pelo medo que as diminui, pelas marcas no corpo e na alma.
Agora preciso de muito cuidado com a figura de estilo porque o assunto é demasiado sério para ser usado como argumento. Faço-o porque abomino a argumentação do medo, da chantagem, das falsas promessas, da vergonha dos outros. Faço-o porque acredito com todas as forças que houve quem tivesse feito escolhas sob um clima criado para condicionar essas escolhas. Faço-o porque de cada vez que ouvi estas frases, me lembrei das Marias Capaz. E ouvi-as ao longo dos últimos meses, ditas pelos nossos governantes.
“Têm duas escolhas, ou manter o caminho que nos trouxe aqui ou voltar aos tempos que vos levaram à desgraça, porque sem nós este país volta ao despesismo. Mas acham que nós gostamos de austeridade? Não fomos nós que a quisemos, foram aqueles que estiveram antes, aqueles que vocês escolheram que nos obrigaram a fazer o que fizemos. Fizemo-lo por amor. Porque mais importante que os nossos interesses é o interesse de Portugal. Olhem para aquela galdéria da Grécia que decidiu que não queria mais austeridade. O que é que lhe aconteceu? Vocês é que sabem. Tanta coragem para eleger um grupo de radicais e olhem como está agora. Debaixo de um novo programa de ajustamento ainda mais duro, comentada pelo mundo e massacrada pelos mercados. É isso que querem? Se for isso, votem nos outros. Querem seguir o rumo que nos tirou do pântano ou embarcar em aventuras para voltarmos a ter a Troika? Quatro anos a por a casa em ordem e agora acham que vamos novamente para a caos? A escolha é simples. A estabilidade e o rigor, ou mais uma aventura que só vai conduzir a mais austeridade. Prometemos que agora não vamos bater, a casa já está em ordem. A partir de agora tenho tanto carinho para te dar. Foi tudo por amor a Portugal.”

Claro que as distâncias têm que ser devidas. Claro que dos 39 % (dos menos de 60% que foram às urnas), muitos houve que votaram na coligação pelas melhores razões. Por acreditarem na ideologia, por concordarem com as propostas, por gostarem dos líderes, por confiança no projeto e nas pessoas. Mas muitos, e estou certo disto, fizeram-no porque o clima do medo, da chantagem, do racional "sem mim não serás ninguém",  resultou. Um dia o meu país, tenho a certeza, há-de ser um Portugal capaz.

quinta-feira, outubro 01, 2015

Aniceto Taxista

Aquilo era demais, parecia uma perseguição. A tal da globalização de que falam com tanto entusiasmo, o infinito leque de oportunidades, parecia existir tão-somente para lhe arruinar a vida. Irra que parecia de propósito. Tudo começou com o clube de Vídeo, e só Deus sabe o quanto lhe custou arranjar aquele 2º emprego. O dinheiro que ganhava a distribuir listas telefónicas não era muito e sempre ganhava mais uns trocos ali no clube de vídeo da zona, horário noturno já se vê. Até às 10 a coisa era animada e entre as 10 e a meia noite aparecia um ou outro cliente com umas preferências mais ousadas. Esses foram os primeiros a desaparecer. A TV Cabo começou com os canais de adultos e em pouco tempo, a freguesia das sessões contínuas começou a rarear. Nem foi preciso esperar muito tempo até o fenómeno se estender aos restantes géneros. Maldita internet. Nem chegou a dois anos para assistir à debandada da mais fiel clientela do aluguer de filmes. O inevitável aconteceu e o clube acabou por fechar.
Mas um homem nunca desiste e já que os filmes estavam na rua da amargura, e as listas telefónicas rendiam pouco, o cunhado era taxista e podia dar-lhe uma ajuda. E assim foi. Às seis da tarde pegava no táxi do cunhado e fazia umas corridas até que o sono deixasse. E ia assim a vidinha até que ao dia em que a firma da distribuição das listas, … enfim, já se sabe. “Agora já não há muito telefone fixo, e mesmo os que têm, espalham-se por vários operadores, e já ninguém usa as listas, pesquisam tudo na net. A bem a bem, só os vendedores de castanhas e as empresas de sondagens em tempos de campanha eleitoral para escolherem amostras representativas…. Não temos espaço para si na empresa”. Tantos anos a carregar listas, escada abaixo escada acima, deixa uma recolhe a velha, tanto degrau tanto papel e, de quando em vez, lá havia um assinante que dava uma ajuda mais generosa. Ora bolas outra vez a net e as novas tecnologias a pregarem-lhe uma partida.
Mas um homem nunca desiste e passou a fazer todo o turno da noite no táxi do cunhado. O dinheiro não era muito mas, palavra de honra que era dinheiro honesto. Pelas conversas que ouvia na praça, lá se ia apercebendo de umas trafulhices que os seus colegas faziam, e dos azares de serviços pequenos depois de horas na fila do aeroporto, e de clientes que estão mesmo a pedi-las, muitos deles nem gorjeta davam. Nada disso lhe interessava, o seu trabalho era transportar pessoas e era isso e apenas isso que fazia, com a simpatia que lhe era possível. As gorjetas que quase sempre recebia pareciam-lhe um sinal de que fazia o que devia ser feito. E logo agora, não é que agora aparecem uns tipos de carros imaculados, todos bem vestidos, muitos deles bem-falantes e educados a transportar pessoas de um lado para o outro. Tudo por causa de uma aplicação vinda, pasme-se o azar do homem, da internet. E ainda por cima o pagamento é feito pela aplicação e o percurso é monitorizado e gravado. Maldita tecnologia. Os colegas já lhe tinham falado daquilo, mas foi ver com os próprios olhos. Sim senhora, carros topo de gama, impecáveis e asseados, com motoristas que pareciam executivos. Aquilo deu-lhe que pensar. E os colegas a quererem fazer a folha aos tais motoristas, tanto mais que havia uma decisão do tribunal que decidia sobre a ilegalidade deste novo serviço. Querem lá ver que a tal da tecnologia lhe ia fazer de novo a folha?

Não, nada disso. É que um homem nunca desiste. Aniceto foi tratar do assunto e desta vez resolveu fazer justiça pelas próprias mãos. Apanhou um desses seus colegas de praça a jeito, e disse-lhe das boas “Tu és mesmo uma besta. Andas com o carro que mais parece uma pocilga, gabas-te dos trajetos mais longos que propositadamente fazes, irritas-te com os clientes que te pedem percursos pequenos, tens uma figura tão cuidada quanto a viatura, insultas quando te dão gorjetas a que chamas miseráveis, diriges-te com palavrões aos outros condutores e conduzes como se fosses dono da estrada.  Achas mesmo que são estes senhores que te estão a arruinar o negócio? Queres bater-lhes e destruir-lhes o automóvel? Achas que a atividade deles é ilegal? E aquilo que fazes aos teus clientes, é o quê? Queres mesmo impedir que eles tenham clientes, nem que seja ao estalo? És tu o culpado do sucesso deles. Vai-te esbofeteando até teres consciência do que andas fazer aos teus colegas que têm brio no que fazem. É que se essas pessoas resolvessem fazer o tipo de justiça que tu fazes, tu, e os outros como tu, iam passar tempos muito duros. Cretino.”