segunda-feira, outubro 05, 2015

Portugal Capaz

Somos um povo de brandos costumes, do cala e do consente, das Amélias dos olhos doces, das Marias vida fria à espera que a vida lhes dê a oportunidade das Marias Capaz. As mulheres da porrada de todos os dias, da violência, do insulto, do sexo à bruta, da ameaça, das promessas quebradas, dos sonhos desfeitos, das marcas no corpo, das feridas da alma, da vergonha, do medo, da vida desfeita. O que as separa da fuga? O que lhes impede a denúncia? O que as faz reféns? Porque foi só uma vez, porque no namoro ele lhe dizia coisas tão bonitas e a respeitava tanto, porque tem andado a beber, porque a ama daquela maneira tão peculiar e além desse amor não tem outro, porque não tem para onde ir, porque ele ia arranjar maneira de lhe por as mãos em cima, porque ele ia ficar tão desesperado, porque os filhos precisam deles juntos, porque ele está desempregado e nem sequer é violento, porque o que é que os outros iam dizer, porque ia viver do quê, do ar? E até quando? Até ficar sem dinheiro e precisar dele outra vez?
Não, não são elas as cobardes. Em cada uma delas há uma capacidade infinita para sofrer, para amar, para perdoar, e para lá de tudo isso para um dia se tornarem numa Maria Capaz. A cobardia está em cada um deles. Pelo poder da besta, pelas frases de chantagem, pelas promessas quebradas, pelas falsas declarações de amor, pelo medo que as diminui, pelas marcas no corpo e na alma.
Agora preciso de muito cuidado com a figura de estilo porque o assunto é demasiado sério para ser usado como argumento. Faço-o porque abomino a argumentação do medo, da chantagem, das falsas promessas, da vergonha dos outros. Faço-o porque acredito com todas as forças que houve quem tivesse feito escolhas sob um clima criado para condicionar essas escolhas. Faço-o porque de cada vez que ouvi estas frases, me lembrei das Marias Capaz. E ouvi-as ao longo dos últimos meses, ditas pelos nossos governantes.
“Têm duas escolhas, ou manter o caminho que nos trouxe aqui ou voltar aos tempos que vos levaram à desgraça, porque sem nós este país volta ao despesismo. Mas acham que nós gostamos de austeridade? Não fomos nós que a quisemos, foram aqueles que estiveram antes, aqueles que vocês escolheram que nos obrigaram a fazer o que fizemos. Fizemo-lo por amor. Porque mais importante que os nossos interesses é o interesse de Portugal. Olhem para aquela galdéria da Grécia que decidiu que não queria mais austeridade. O que é que lhe aconteceu? Vocês é que sabem. Tanta coragem para eleger um grupo de radicais e olhem como está agora. Debaixo de um novo programa de ajustamento ainda mais duro, comentada pelo mundo e massacrada pelos mercados. É isso que querem? Se for isso, votem nos outros. Querem seguir o rumo que nos tirou do pântano ou embarcar em aventuras para voltarmos a ter a Troika? Quatro anos a por a casa em ordem e agora acham que vamos novamente para a caos? A escolha é simples. A estabilidade e o rigor, ou mais uma aventura que só vai conduzir a mais austeridade. Prometemos que agora não vamos bater, a casa já está em ordem. A partir de agora tenho tanto carinho para te dar. Foi tudo por amor a Portugal.”

Claro que as distâncias têm que ser devidas. Claro que dos 39 % (dos menos de 60% que foram às urnas), muitos houve que votaram na coligação pelas melhores razões. Por acreditarem na ideologia, por concordarem com as propostas, por gostarem dos líderes, por confiança no projeto e nas pessoas. Mas muitos, e estou certo disto, fizeram-no porque o clima do medo, da chantagem, do racional "sem mim não serás ninguém",  resultou. Um dia o meu país, tenho a certeza, há-de ser um Portugal capaz.

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