sexta-feira, julho 10, 2009

Travessa do Calvário

Notou-lhe a presença cada vez que arrumava o carro naquela rua. Já a tarde se fazia noite, e sempre o mesmo quadro, assim como se de um ritual. Do velho carro de compras que arrastava durante o dia, montava abrigo para mais uma noite. As arcadas do prédio e os cartões armados, castelos de cartas de um qualquer jogo de azar, conferiam-lhe débil refúgio e ridícula privacidade para a noite. Não lhe sabe idade, advinha-lhe menos que metade de um século, nunca lha perguntou. Também porque haverá? A higiene possível é feita em gestos escondidos e delicados, como um gato. Por fim solta um imenso cabelo que ainda brilha e já deitada, outros cartões para coberta. Viu-a tantas vezes neste ritual. Nunca lhe dirigiu palavra. Nunca lhe soube o sorriso.
A manhã traz outra luz e se cedo, outros rituais. Os cabelos enrolavam-se de novo e presos em novelo, sustinham-se por mais um dia. Passou por ela quando levava o filho à escola, ali mesmo, na rua de cima. Disse-lhe “bom dia”. Na volta das palavras saiu um bom dia cheio de música e a pergunta ao petiz “Então vais para a escola?”. Escancarou um sorriso. Sincero, dócil, e maltratado. Desde esse dia, eram assim as palavras e os encontros. Nunca menos que um bom dia ou uma boa noite, nunca mais que um sorriso. Sempre a vontade de saber que tropeções a levaram ali, na confortável distância de não se envolver para não cuidar. E se de noite, a chuva caía à bruta, ou o frio gelava os ossos, nunca lhe vinha à ideia a infeliz debaixo das arcadas. Talvez no dia seguinte se perguntasse como havia ela passado a noite, mas nem sequer partilhava com alguém o formigueiro da inquietude.
Por vezes pensava numa ajuda ou numa conversa, nunca lhe parecia oportuno ou adequado. “Se calhar até leva a mal” pensava, como que a desmobilizar qualquer ímpeto de caridade. Ficou-se sempre por ali, a troca afável de um cumprimento e um sorriso. Cómodo não é?

3 comentários:

Anónimo disse...

Tão dolorosamente cómodo.

E tantas são assim as situações que cruzamos,
e a que dizemos «se calhar até leva a mal».

E a vida não pára de andar,
de passar.

t frazao

ana.a.frazao disse...

É o que dá não arrumares aqui a Caixa... apanhas com alfinetes como o aqui de cima!!
Não podia ser melhor...ehehehe!

Escrevinhador disse...

olá,

grande blog o seu. muitos parabéns pelo seu trabalho.

Visite o blogue:

interjeicoes.blogspot.com

Abraço